domingo, dezembro 31, 2006

quinta-feira, dezembro 28, 2006

PATRIA -III

Os apátridas dos negócios prefiro
Aos lacaios dos apátridas,
Quando os segundos de governantes travestidos,
Impõem o tal respeitinho.

E de ti se riem, alarves e felizes, ó Pátria!

A LUXÚRIA

“Segui, ó gente mortal, o exemplo das deusas
e não negueis o prazer, que vos é natural, aos homens que vos desejam.
Mesmo que logo depois vos enganem, que perdeis? Tudo fica no seu lugar;
ainda que mil vos possuam, nem por isso alguma coisa se perde”.
Ovídio, Arte de amar, Livros Cotovia

“ Conhecera Teresa mais ou menos há três semanas numa cidadezinha da Boémia. Só tinham passado pouco mais de uma hora juntos. Ela acompanhara-o à estação e tinha esperado até ele entrar no comboio. Dez dias mais tarde, veio vê-lo a Praga. Fizeram amor logo no próprio dia da sua chegada”.
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

“oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo… este medo, estes contínuos terrores que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. –Oh que amor, que felicidade…” (Madalena)
Garrett, Frei Luiz de Sousa


Por razões da minha vida pessoal não me foi possível consultar as obras necessárias para, acerca da luxúria, vos fornecer todo um manancial de citações, que ilustrariam melhor este tema do que as minhas palavras. Luxúria significa, como todos bem sabeis, sensualidade e libertinagem, nomeadamente. E é um dos sete pecados capitais.

Conheceis, certamente, a expressão “até os bichinhos gostam”. Tem mais uso junto do elemento masculino, mas concordareis que se trata de uma bela observação, que a vasta Natureza nos proporciona. E porque amar é tão natural como respirar, podem vir todas as doutrinas, podem chover catecismos, todos os conselhos, todas as bulas, que a força do desejo será sempre superior a todas as imposições de ordem moral e outras.

Pois “ se até os bichinhos gostam”… Façam todas as vontades ao corpo e ao espírito, no domínio da sexualidade. Sigam os sábios conselhos do imortal Ovídio. Aprendam e pratiquem a arte de amar. Na verdade, só amando lograrão atingir a felicidade. Mandem às malvas a temperança que os catecismos prescrevem! Mandem às urtigas todas as restantes virtudes, teológicas e cardinais, porque Deus perdoa sempre, e, nos tempos que correm, os virtuosos estão fora de moda.

Vou concluir com a sensação de que este pecado merecia um tratamento mais eficaz e desenvolvido. Deixo-vos, no entanto, um conselho: sejam pecadores metódicos; não se envergonhem de ser felizes; tornem as vossas vidas coloridas e interessantes.

terça-feira, dezembro 26, 2006

QUANDO (POEMA DE NATAL)

Prá Filipa, com amor.

Quando o teu choro inundou
o silêncio doloroso daquela noite longa

quando me apoderei da certeza
da perfeição desejada

quando...

quando meu amor
soube tudo
do pouco muito que queria saber
corri pelas ruas da cidade
como um cavalo sem freio
para repartir a alegria incontida
de ter dado vida à vida

e após respirar o ar
de Lisboa ainda adormecida
recostei-me no banco do automóvel
e deixei que os meus olhos vertessem
um lágrima comovida

Jan./81

IGREJA HIPÓCRITA

A Igreja Católica é, indiscutivelmente, a instituição mais antiga e estável de Portugal. E também aquela que mais influencia toda a vida da nossa sociedade. São-lhes reconhecidos e outorgados incontáveis privilégios.

Durante quase nove séculos, a Igreja Católica tem interferido na vida de Portugal, mais ou menos a seu bel-prazer, tomando sempre partido ao lado dos detentores do mando. Os períodos de menos influência confirmam apenas a regra. Daí que esta vetusta senhora se permita interferir na vida do país de forma intolerável. É agora o caso, em vésperas de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A grande dama, que conhece como ninguém as engenharias de manipulação das almas, propaga aos sete ventos o seu apego à vida humana. E no entanto, não mexe uma palha para ajudar a resolver a pandemia que dizima as populações africanas e que dá pelo nome de HIV. Bastaria que, tolerante, aconselhasse o uso do preservativo.

A Igreja Católica, permanentemente alinhada ao lado dos segmentos mais conservadores da sociedade portuguesa – e quiçá minoritários -, ao imiscuir-se tão profunda e apaixonadamente na questão do aborto, desrespeita os defensores do sim e coloca-se em posição de ser desrespeitada. Está a badalar de mais.

Só quem respeita merece respeito!

domingo, dezembro 24, 2006

EM TEMPO DE NATAL

Sófocles escreveu: “grande maravilha é a Terra, mas maior maravilha é o Homem”. Se não for esta a frase pouco importa, porque importante, mil vezes mais importante que uma forma, neste caso particular, é o conteúdo da mensagem que se quer transmitir. Cito o autor de Antígona, porque é chegado o momento de mergulharmos de novo nas raízes da nossa decrépita e bem-amada Civilização Ocidental para, penso eu, renascermos imbuídos de um novo humanismo, que ponha um fim rápido a estas sociedades sem princípios, onde pontificam valores tão nobres como o lucro e o consumismo.

TORGA, OS DIÁRIOS E EU

Rabiscar notas, mesmo sob a forma de diário, não é tarefa fácil. Ainda que a escrita me esteja na massa do sangue, alinhar notas que suscitem interesse, numa prosa minimamente escorreita e ágil, repito, não é tarefa fácil. E há dias em que o vazio é total e o branco assusta. E no entanto, escrevo pelo prazer que a escrita me proporciona e não com a intenção de ganhar a vidinha. De resto, apenas um escrito me rendeu meia dúzia de patacos.

Concordo que um diário seja um espelho - um espelho muito peculiar - que há-de reflectir do autor a imagem desejada. Torga faz passar meia dúzia de ideias fortes: um homem na cidade, desenraizado, que procura no espaço primordial de S. Martinho de Anta a força para perseverar nos muitos desafios da vida; um homem dotado de uma grande firmeza de ânimo, à boa maneira dos estóicos, visível já nos textos escritos na prisão do Aljube, nos anos trinta; um homem solidário com os seus semelhantes e preocupado com a condição humana; um homem ousado, quando critica o Quixote de Cervantes; etc. Mas há outro Torga que se vai insinuando e que nada tem a ver com o caçador de S. Martinho de Anta: o artista que viaja e lê os autores mais significativos da literatura europeia (Ibérico por convicção, a sua Europa estende-se até aos Urais);o homem culto que é capaz de se pronunciar acerca de Rembrant e Beethoven. Ao fim e ao cabo, apesar de reivindicar persistentemente as suas raízes camponesas, lá bem no fundo, Torga não despreza um certo cosmopolitismo. E aqui encontramos, seguramente, uma das razões da sua candidatura ao Nobel.

Seja como for, não há que levar a mal que o autor de Os Bichos tenha as suas estratégias. É um direito que lhe assiste. Há que respeitá-lo enquanto homem e criador.

Retomando o fio à meada e para concluir, compartilho da ideia de que um diário, construído texto a texto, como quem constrói uma casa, é um acto criador como outro qualquer. Com a vantagem de o seu autor se despir perante os leitores, enquanto pessoa empírica, e não poder gozar de um estatuto idêntico ao do narrador que, no entender de Roland Barthes, “é um ser de papel”.

EM TEMPO DE NATAL (ORAÇÃO)

Dai saúde, Senhor, aos nossos bem-amados Chefes, para que nos possam guiar pelos Teus caminhos, nesta dura peregrinação que é a vida.

Protegei, Senhor, os nossos mui queridos Chefes, todos sem excepção, para que, mediadores entre a Luz e as trevas, nos possam iluminar os passos, nesta miseranda passagem pelo mundo.
Daí sabedoria, Senhor, aos nossos amantíssimos Chefes, também eles como nós pecadores, mas por Vós eleitos, para não nos deixarem pôr o pé em ramo verde, nesta lastimável passagem pelo reino das sombras.

Amai-os, Senhor, infinitamente, para que eles nos possam amar nesta difícil caminhada para a Glória, ou, no mínimo, para que não nos possam tramar.

Dai-lhes saúde, Senhor!
Protegei-os, Senhor!
Dai-lhes sabedoria, Senhor!
Amai-os infinitamente, Senhor!

Amai-os, Senhor, como eles nos amam.

EM TEMPO DE NATAL

Os santos que são santos também pecaram, diz o povo. E no entanto, quando se reencontraram com Deus (que cristão!), todos se sentaram à sua direita. Pecaram, com certeza, por pensamentos, palavras e obras e ter-se-ão arrependido contritamente, para merecerem a indulgência do Criador. E os homens tê-los-ão perdoado?

Um homem pode ter vivido a vida mais virtuosa das vidas, mas no dia em que cometer o mais insignificante deslize, os seus semelhantes constituir-se-ão em pelotão de fuzilamento. Em nome de Deus - mesmo sem procuração -, da justiça e da liberdade. O ensinamento profundo da parábola da adúltera, nunca entrará nas suas cabeças empedernidas.

PÁTRIA - II

Portugal é hoje um país de repteis. Não admira, assim, que a traição espreite a cada esquina. Os portugueses sempre foram mesquinhos e interesseiros. E nada dói tanto como a ausência de grandeza. Portugal começou a agonizar, com efeito, ainda na primeira metade do séc. XVI. Caminha para a dissolução final, inelutavelmente. E sobretudo, porque nunca mais soube encontrar alternativas credíveis e atempadas. Hoje, agarra-se e chupa a teta da mãe Europa com quantas forças tem. O pior virá, quando a teta, sugada até ao tutano, deixar de ser o almejado D. Sebastião.

Curiosamente, a religião nos fez grandes e pequenos. Com o mito de cruzada dominámos metade do mundo. A Inquisição castrou-nos para sempre.


sexta-feira, dezembro 22, 2006

AVAREZA

Se perguntarem a um avarento, por que nutre tanta apetência pela posse de bens materiais, antes de mais, negará a sua qualidade de avarento. Dirá que, ao contrário do que os outros pensam, é apenas uma pessoa previdente e contará ao seu interlocutor a conhecida fábula da cigarra e da formiga. E dirá que se sente bem na pele desses minúsculos e negros bichinhos que, de uma forma mecânica, executam metodicamente o vaivém entre o local onde se encontra a semente - ou seja lá o que for -. e o buraco-armazém.

Como é bom de ver, o avarento não é um contemplativo. Será mesmo incapaz de retirar prazer, de ordem estética ou outra, dos seus bens materiais. Não viu, decerto , “Casimiro e Carolina no teatro do Bairro Alto ou o “Círculo de Giz Caucasiano” no Teatro Aberto. Não frequenta salas de cinema, não aprecia pintura e escultura, não viaja. Em relação às coisas que enriquecem verdadeiramente um ser humano, o avarento é um homem não. E poderíamos ficar por aqui no que à avareza concerne, mas o retrato ficaria incompleto.

O avarento não cultiva a vida de relação. Vive ensimesmado. Prefere a conversa com os seus botões. Inventaria e actualiza permanentemente o valor dos seus bens. Tudo o que esteja para além do estritamente necessário é supérfluo. Quando compra botas novas aos filhos, recomenda-lhe que dêem passos largos. Gosta de ser convidado, mas quando toca a sua vez de pagar a conta, desafia os parceiros para jogar à moedinha. Vai aos arames quando lhe falam em férias. Cria galinhas na varanda de sua casa para poder vender ovos. É o único que não ri, quando lhe contam a nova versão da fábula da cigarra e da formiga, que aqui deixo reproduzida:

No pico do Inverno, a cigarra bate à porta da formiga e esta pergunta:
- Quem é?
- Sou eu, a cigarra.
- Que queres?
- Quero apenas falar contigo, formiga.
- Já conheço os teus truques desde que o mundo é mundo. Estou farta da tua música.
- Não sejas parva , formiga. Abre lá a porta!...
A formiga abriu o postigo e deparou com a cigarra toda anafada e de casaco de peles. È então que a cigarra diz:
- Vou para Paris. Vim despedir-me de ti.
- Estupefacta, a formiga replicou:
- Olha, cigarra, já que vais para Paris, se vires o La Fontaine, manda-o foder com a história da fábula.

Terão notado, com certeza, que me centrei apenas num tipo de avarento, ou seja, naquele que vive obcecado pelo dinheiro e pelos bens materiais. O discurso poderia, no entanto, ser dirigido noutras direcções. Poupemos, por hoje, os ambiciosos de todos os matizes e os mesquinhos.

A avareza, caríssimos alunos e colegas, é um pecado capital. Pratiquemos todos, todos sem excepção, a prodigalidade, tornando-nos dignos do senhor D. João V, o tal que, com o oiro do Brasil, mandou construir o convento de Mafra e passou à História com o cognome de “o Magnânimo”.

CANTIGA DO COITADO

Em Vigo
Perguntei às ondas:
- Sabeis Novas da minha amiga?
E as ondas me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Pontevedra
Perguntei aos barcos:
- Sabeis novas da minha amiga?
E os barcos me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Santiago
A Santiago perguntei:
-Sabeis novas da minha amiga?
E Santiago me respondeu:
- Um novo amigo tem!

Ferido no coração,
A Lisboa voltei
Mil vezes ouvindo:
- Um novo amigo tem!

- Um novo amigo tem!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

PÁTRIA - I

Quando eu era menino e moço,
escrevia-se com "pê" maiúsculo
e dizia-se com muito respeitinho.

Inda ia da ocidental Europa até Timor.

Por ela se delapidava a fazenda,
por ela se ignorava o sofrimento,
por ela se morria estupidamente.

Os que morriam, obviamente.

ANTÓNIO OSÓRIO

Pró Daniel Abrunheiro,
com amizade.

Venturoso foi António,
Osório, de apelido.
Inda chorava no berço
E já tinha Camões lido.

Com um pai tão preparado
Prá arte de versejar,
As trovas de Luís Vaz
Eram canções de ninar.

Quem aprende assim no berço
Com tanta calma e rigor
Pensa e age, serenamente,
e o poema nasce sem dor.

terça-feira, dezembro 19, 2006

ACTUALIDADE

Santa Iria de Azóia, 17 de Janeiro de 2003 – Está na moda dizer mal da Função Pública. Diz o director do jornal e o patrão dos patrões, o homem do governo e o da oposição, o cidadão comum e o mais altamente colocado, o inteligente e o estúpido, etc. É a grande fraternidade para um regabofe de maldizer.

E os funcionários públicos merecem o chorrilho de disparates que sobre eles se vai dizendo e insinuando, porque, de um modo geral, os “opinantes” são uma cambada de ignorantes que não sabem fazer – ou não querem fazer a destrinça – das coisas. Os funcionários públicos são apenas os meros executantes, em muitos casos sem meios, do frenesim legislativo dos políticos governantes e do parlamento, cujo fito é controlar, controlar cada vez mais a vida dos cidadãos, para poderem controlar o poder – supostamente democrático – que exercem despudoradamente, ora mentindo, ora simulando falar a verdade.

Há, com certeza, muitos calaceiros na Função Pública. Há, com certeza, quem se aproveite da função para obter vantagens. Há, com certeza, muita gente que deveria estar algures, longe da coisa pública, para que as águas deixem de estar inquinadas. Há, com certeza! Mas há, igualmente, homens e mulheres honestos. Há, igualmente, centenas de milhar de pessoas que merecem respeito e consideração. Não me seria difícil contar aqui meia dúzia de situações que ilustram a desfaçatez de muitos dos tratantes da coisa pública.

O mito do privado é um mito e como todos os mitos, como dizia Pessoa, é o tudo que não é nada. Há bons e maus privados como há bons serviços públicos e bons servidores da coisa pública. Há muitos privados que, não fosse a política a miséria que é, estariam atrás das grades, porque são verdadeiros crápulas. A começar pelos que detêm os cordelinhos do mundo financeiro. Com a banca à cabeça, obviamente.

Esta onda de maledicência que varre a Função Pública esconde apenas culpas próprias de agentes vários, incapazes de alinhavar meia dúzia de ideias para reformar o que tem de ser reformado. Portugal é um país de pulhas e sacanas.


TINTO ARAGONÊS

Um bom tinto aragonês
Dá coragem e alegria.
Bebe tanto o português
E… é triste, quem diria?!


Dá coragem e alegria,
Na conta certa bebido.
Quem emborca em demasia
C’os burros é parecido.


Bebe tanto o português
Ao almoço e ao jantar,
Um copo de cada vez,
Aos golinhos, devagar.


E… é triste, quem diria?!
Quem bebe com devoção,
Deve sentir alegria.
Tristeza? Tristeza…Não!

NOITE DE LUA CHEIA

É noite de lua cheia,
Meu amor anda a rondar.
Já em mim o fogo ateia
E não o pode apagar.

Quem mo dera ter aqui
Para regar o braseiro.
Ai, amorzinho, eu, por ti,
Fugia para o Barreiro!

Ou outro sítio qualquer,
Que este fogo me devora.
A ti me quero render,
Vou sair daqui pra fora.

É noite de lua cheia
E de grande agitação.
Oh, tenho o mel na colmeia
Tão longe da tua mão!

segunda-feira, dezembro 18, 2006

REFLEXÃO

Não me venham falar da Pátria.
Não quero ouvir falar de pátrias
- nem desta, nem doutras -,
que as pátrias,
à semelhança dos deuses,
só sabem exigir sacrifícios,
desmedidos e vãos.
AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM, do autor Húngaro Sándor Márai, é um magnífico romance publicado pelas Edições Dom Quixote. A fábula poder-se-ia resumir como na badana do livro, mas a singularidade do romance, em minha opinião, reside no facto de, ente os capítulos 13 e 19, o narrador se eclipsar quase totalmente para que o velho general possa analisar a sua amizade com Konrád , o amigo de infância, que mais tarde o havia de trair mantendo uma relação secreta com Krisztina, sua mulher.

Konrád foge e vai viver no Extremo Oriente. Henrik permanece na sua floresta, onde espera, primeiro, na casa de caça, que Krisztina morra; e, depois, no palácio decadente, que Konrád regresse ao local do crime. A acção decorre, à boa maneira da tragédia grega, em menos de vinte e quatro horas, no velho Castelo e a intriga consiste em o velho general apurar se Konrád e Krisztina tinham gizado, em comum, o plano para o eliminar de um dos vértices do triângulo amoroso.

Durante quarenta e um anos e quarenta e três dias, o velho militar analisou todos os pormenores até à exaustão; tinha obtido a resposta para todas as questões; tinha dissipado todas as dúvidas; queria, agora, confrontar Konrád com as conclusões e, de certo modo, fazê-lo pagar, responsabilizá-lo, pela sua responsabilidade no destroçar das três vidas.

Tenho dúvidas que Konrád seja uma verdadeira personagem durante este jantar de acerto de contas. É antes de mais o pretexto para uma profunda reflexão sobre o sempiterno tema da amizade, onde Márai deixa passar a ideia de que comporta sempre uma «pitada de Eros». Henrik é o veículo para esse discurso que flui como um rio e onde as interrogações têm uma mera função retórica. O jantar é uma cena única e o discurso apenas a parte material de um admirável monólogo interior, entre o anoitecer de um dia e o amanhecer do dia seguinte.

O NATAL

Lisboa, 23 de Dezembro de 2002 – O Natal começa a tornar-se uma quadra aborrecida. Anda toda a gente num frenesim desenfreado, como se o mundo fosse a acabar: viagens, prendas, almoços, jantares, jantares, almoços, prendas e viagens. É a loucura quase total. Riem-se os comerciantes de tudo e mais alguma coisa e cantam os industriais da restauração. Esquecem-se por uns dias as carências quotidianas para se gastar o que se não tem.

Na minha infância o Natal era diferente: minha mãe fazia filhoses, cantava-se o menino Jesus à roda dos madeiros e ia-se à missa do galo. No dia de Natal estreava-se uma camisola ou uma camisinha e brinquedos não havia. É verdade que a quadra não transpirava esta fraternidade actual, mas era, quanto a mim, muito mais autêntica.

D. Quixote eclipsou-se e quem manda agora é Sancho Pança. Temos de esperar que volte D. Quixote, para que a quadra reganhe o seu simbolismo e alegrias tradicionais. Esta fraternidade cheira-me a uma coisa que não vou nomear. Ou se insistem nomeio. Hipocrisia! Arranjinhos de comerciantes e quejandos para desgraçarem as nossas bolsas.

Aqui ficam três quadras da minha infância, que todos cantávamos do Natal até aos Reis:

Ó meu menino Jesus,
Ó meu menino tão belo,
Logo vieste nascer,
Na noite do caramelo!

Eu fui dar ‘ma volta ao adro
O madeiro está arder,
O presépio está armado
E o Menino por nascer.

Lá vai a barca bela,
Que a fizeram os pastores,
Nossa Senhora vai nela,
Toda coberta de flores.

MAFRA

Mafra, 17 de Dezembro de 2002 – Mafra é uma aldeia simpática. Nada ali fere a sensibilidade do visitante. Um largo muito concorrido, dois ou três cafés simpáticos e a nossa jóia joanina a dominar as restantes construções.

O Convento – o calhau, na linguagem garrida dos mafrenses-, celebrado num admirável romance de Saramago, tem a cara lavada. E digo a cara, porque há muitas dependências do interior do gigante que necessitariam de barrela geral. Segundo a vox populi , os subterrâneos são habitados por milhões de ratos.

Porém, como os ratos não se passeiam pelas ruas de Mafra, que aqui fique expressa a ideia de que Mafra é uma aldeia simpática e limpa e merecedora de um Presidente de Câmara mais português e menos PPD, ou seja, capaz de encaixar o Memorial do Convento e o seu autor. É que Presidente que manda fazer estradas e outras obras, mas não aceita o nome de Saramago para uma Escola da terra, não sei se merece ser Presidente.

Mafra é - e deverá ser em todas as circunstâncias -, uma aldeia simpática e limpa.

CASTELO BRANCO

Mata, 1 de Dezembro de 2002 – O centro de Castelo Branco está irreconhecível. As obras do projecto polis arrancaram a trinta e nove à hora e para quem vem de visita é a barafunda geral. Quem quem se habituou a comprar jornais no Vidal ou no João, filho do velho Albino, está tramado. Não sei concretamente o que vai sair das obras. Não li nada, nem vi maquetas. Espero paulatinamente para ver o resultado final e desejo que estejam a ser rasgados caminhos para o futuro.

Um café na Colmeia e aí vai ele, J. A Morão abaixo, direitinho à Mata que nem um tiro. Sempre achei que a Mata é a minha pátria primeira. A ideia pode parecer extravagante, mesmo espatafúrdia, mas há entre mim e o espaço da aldeia uma identificação tão profunda, que a minha memória anda sempre em ebulição.

Bem vistas as coisas, vivi muito mais tempo noutros sítios do que na Mata. Castelo Branco, Paris, Luanda e Santa Iria de Azóia, consumiram quase quatro quintos da minha existência. E no entanto, à semelhança de Ulisses, é para a Mata que quero voltar. Para ter Castelo Branco por perto. E outros espaços da Beira, que são para mim um verdadeiro roteiro sentimental.

O ter vindo à Mata e a Castelo Branco, neste dia primeiro de Dezembro... Provavelmente, está escrito no livro grande.

domingo, dezembro 17, 2006

MALVEIRA

Malveira, 26 de Novembro de 2002 – A Malveira, para dizer a verdade, já não é o que era. Transferida a feira para longe do Largo, dir-se-ia que acabaram com a vida a esta vila saloia, em cujo cemitério repousa Beatriz Costa, celebrizada pela franjinha e pelo sorriso gaiato.

Era natural de uma das localidades da freguesia da Malveira e nesta quis ficar sepultada, logo à entrada, tornando-se do cemitério o verdadeiro ex-libris, se é que assim se pode falar de mortos e cemitérios.

É verdade que o Largo já não chegava para as encomendas e que se tropeçava frequentemente nas espias das tendas dos vendedores. De qualquer modo, no meio daquela desordem – ou caos – havia uma certa ordem ou o princípio de uma certa ordem, que emprestava uma peculiaridade cativante a esta vila marcadamente rural, mas onde confluíam e confluem comerciantes de todo o país. Agora a coisa está arrumadinha num cantinho, tudo muito certinho, mas sem ponta de graça. Beatriz Costa havia de encontrar a ideia espatafúrdia e havia de o dizer alto e bom som, entre duas saborosas gargalhadas.

sábado, dezembro 16, 2006

CALDAS DA RAINHA

Caldas da Rainha, 28 de Setembro de 2002 – É hoje uma das cidades portuguesas com mais rotundas. Disse-me a Zélia que só Viseu ganha às Caldas. Provavelmente, permitem um melhor escoamento do tráfego rodoviário e reduzem a sinistralidade. Parece-me, no entanto, que a grande moda se está a generalizar a todo o país.

Se se tratar de um indício de desenvolvimento, que haja de norte a sul, de oriente a ocidente, multiplicação de rotundas. O que o país precisa é de desenvolvimento, um desenvolvimento sustentado, que nos permita uma real aproximação aos ricos, mas em que os nossos pobres se aproximem também, cada vez mais, dos pobres dos países ricos da Europa.

As Caldas têm crescido. A cidade já não é a mesma que conheci em Outono de 1973. Conserva, no entanto, uma infinidade de traços – para além da ordinarice da loiça –, que lhe conferem um carácter único.
As caldas da Rainha valem hoje sobretudo pelo frondoso parque municipal e pelo museu Malhoa. E ainda pela bonita e movimentada Praça da República.

VILA NOVA DE MILFONTES

Vila Nova de Milfontes – 26 de Setembro de 2002 - Tem crescido, mas não com o ritmo alucinante de outras regiões ribeirinhas do país. Não se vêem construções com as volumetrias doidas de Armação de Pêra e Portimão. As casas antigas estão bem conservadas e respeitam a tradição. O novo que se vai construindo não ofende ninguém.

O veraneante atento apercebe-se, também em Vila Nova de Milfontes, dos múltiplos rostos do Alentejo e da variedade das suas gentes. E particularmente dos seus traços comuns. O falar e o modo de estar são inconfundíveis. A calma é tanta, que, confesso, me custa a acreditar que é no concelho de Odemira que ocorrem mais suicídios em Portugal.

Haja bom senso e Vila Nova de Milfontes vai continuar a ser um dos locais mais aprazíveis de Portugal.

PREMONIÇÃO

Albufeira, 24 de Setembro de 2002 - A nossa irmã ( nós também somos filhos da grande Hispânia), onde vão coabitando muitos povos e sensibilidades, transpira riqueza por todos os poros. Soube modernizar-se a tempo e horas e tornar-se competitiva; soube tornar-se, no seio da União Europeia, um parceiro respeitado; sabe trabalhar e distribuir e andar de cerviz direita.

Quem viajar de Rosal para Aracena, encontrará soutos a perder de vista, frondosos e carregados de ouriços. São um regalo para quem olha com olhos de ver. Quem viajar para sul, em direcção a Huelva e em Lepe tomar a direcção de Ayamonte e Portugal, encontrará quilómetros e quilómetros de laranjais, e também de olivais, que constituem a prova eloquente de que a Espanha se distancia cada vez mais deste portugalzinho da trica, onde ninguém se preocupa com o futuro.

É com muita mágoa que escrevinho estas linhas, porque sei de fonte segura que mais tarde ou mais cedo teremos de nos ajeitar no seio da grande irmã. Ajoujados. Sem a altivez de galegos e catalães. Os bascos, esses, são loiça de outra fábrica.

CASTELO BRANCO

Castelo Branco, 6 de Setembro de 2002 - Castelo Branco é um vício. Um saboroso vício, diga-se em abono da verdade. Mesmo sem aqui ter casa, sinto-me, em cada rua, num espaço amigo e familiar.

Conheço-lhe quase todos os cantos. E às vezes embala-me a ilusão de que as mudanças não têm sido muitas; porém, quem se der ao trabalho de subir ao velho Castelo, perceberá quanto a cidade cresceu nos últimos quarenta anos.

Surgiram naturalmente novas centralidades. Seria difícil convergir para o seu belo centro histórico a partir do Ribeiro das Perdizes ou dos Bons Ares, da Líria ou do Montalvão. Sente-se, todavia, que o feitiço que nos prende à cidade anda por ali entre os Paços do Concelho e a Sé Catedral, a Rua Mártir S, Sebastião e a Rua D. Dinis. Quiçá, na sempre bonita Avenida Nuno Álvares Pereira.

Definitivamente, creio que Castelo Branco é um vício.

ARRUDA-DOS-VINHOS

Arruda-dos-Vinhos, 29 de Agosto de 2002 - A Fresca, à torreira do sol, confesso, não é nada agradável. Daqui vai a minha solidariedade para todos aqueles que têm de ganhar a vida, ora sob um sol inclemente, ora debaixo de chuva, ora vergastados pelo vento.

Arruda-dos-Vinhos tem crescido imenso nos últimos anos. A auto-estrada avança a olhos vistos, e, dentro de pouco tempo, a antiga vilazinha, situada a noroeste(?) de Lisboa, ver-se-á transformada numa cidade dormitório da capital do reino.
Que diria Irene Lisboa, se agora ressuscitasse, e quisesse visitar a sua Arruda natal, perante tanta construção? A pergunta é displicente, porque os Keil do Amaral já falecidos teriam atitude idêntica em relação a Camarate.

Sei perfeitamente que há planos directores municipais e a consciência cívica que se opõem ao crescimento sem regras. Sei igualmente do apetite voraz da rapaziada da construção. Quem ganhará esta guerra?

A Arruda ainda não está completamente descaracterizada, mas temo que isso venha a acontecer num prazo não muito dilatado. Os sinais são demasiado evidentes.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

OS EUA, A CIA E PINOCHET

A AMÉRICA NÃO SABE CONTAR OS VOTOS!
S. Domingos de Rana, 14 de Novembro de 2000 - A virtuosa América, que tem prescrito os remédios para as crises políticas do mundo inteiro, parece não ter agora a solução molagrosa para a sua própria crise e corre o risco de entrar para o clube dos curandeiros e charlatães. E seja qual for o eleito, Bush ou Gore, não se livra do anátema de fraude eleitoral. A virtuosa América vai aprender, por sua conta e risco, que não se deve cuspir para o ar.
Neste preciso dia, soube-se também que a CIA - a sempre virtuosa CIA -, que o Papa devia canonizar, deu, no já longínquo Setembro de 1973, uma ajudinha inestimável ao democratíssimo Augusto Pinochet, que derrubou Salvador Allende e governou o Chile até há menos de um ano, com os virtuosos processos da pátria da democracia. Os documentos confirmam apenas as evidências, o segredo de Polichinelo, o óbvio.
Como Gregory Corso, pergunto: quando é que ganhas juízo, América?
( Quem disse que a escrita de um diário é efémera?)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

O PASSADO E O PRESENTE

Santa Iria de Azóia, 10 de Dezembro de 2002 – Greve geral. É sempre um dia de grandes tensões. Os números nunca batem certo e os ministros, sejam do PS ou do PPD/CDS, tentam sempre menorizar os trabalhadores. Deste feita foi aquela figurinha esquálida, Bagão de apelido, que veio lançar a poeira para os olhos do povo. O que me dana mais nesta caca toda é que tenho de partilhar a nacionalidade com semelhante indivíduo.
O antigo camarada Zé Manel repete até à exaustão que não há alternativa à política do Governo. Ao abrir a boca, a criatura mostra-nos os seus argumentos cheios de cáries, porque não mudou rigorosamente nada. Continua totalitário como nos idos de 74. Então só há uma solução para os problemas do país?
De facto, sou um campónio armado em esperto. Pensava eu que havia sempre uma panóplia de soluções para os problemas do meu país. Constato agora, incrédulo, que não, que não há alternativa à política do governo. Durão dixit . Três vezes nove são vinte sete e acabou-se. O que está dito está dito e passa a ter força de lei.
O que me atormenta, no momento presente é o facto cada vez mais evidente de Portugal parecer, cada dia que passa, um livro fechado.


terça-feira, dezembro 12, 2006

LÁZARO

De Lázaro
Falam
Os Evangelhos;
Porém,
O próprio,
Maravilhado,
Remeteu-se
Ao silêncio
E nada
Disse.

Compreensivelmente.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

A INVEJA

Em Portugal, não há invejosos. Perguntem a cada indígena se é invejoso e verão a resposta que obtêm. Que não, que é sentimento que não experimentam, mas que têm vizinhos com esse maldito defeito, a que também chamam “dor de cotovelo” e “dor de corno”. Quanto a esta última expressão não a voltarei a repetir, devido ao respeito que devo à pátria de Fernando Pessoa, ainda que nela se tenham expressado bastardos como Bocage e Natália Correia e também ao sentimento de nojo que nos devem merecer todos aqueles que, atraiçoados devida ou indevidamente pelas consortes, sofrem, para além da própria “coita” individual, o opróbrio de uma sociedade mexeriqueira e mesquinha.

Estou firmemente convencido de que os portugueses e as portuguesas - a ordem é arbitrária - só não têm inveja dos... hasteados de um e de outro sexo. No que concerne à generalidade das coisas da vida, é óbvio que somos invejosos. Invejamos a loira que coube em sorte ao nosso vizinho do quinto andar; invejamos a bruta vivenda do nosso amigo, ainda que gostemos de lá ir a pretexto de um copo e de dois dedos saudosos de conversa; invejamos o BMW, último grito, adquirido pelo proprietário do supermercado onde compramos as cervejolas; invejamos o cargo de direcção ocupado por um antigo condiscípulo, que nunca dera nas vistas enquanto estudante, mas que teve inteligência para ir desbravando caminhos, atropelando tudo e todos; invejamos até, pasme-se, um naco de prosa escorreita e telúrica como a que produziu Miguel Torga.
Obviamente que só invejamos as coisas boas, porque as más..., essas, que fiquem para os outros! É como na história do bêbado, todos reparam nos copos que bebe, mas poucos se ralam com os trambolhões que dá.

Para além dos execráveis prestamistas, que constituem a mais abominável casta de invejosos; há aqueles que, sendo tão invejosos como os restantes, andam permanentemente a falar de justiça, como se fosse possível realizá-la, a partir de um sistema que só sabe gerar injustiça. Aprendi a desconfiar, há muitos anos, daqueles que por tudo e por nada falam de justiça.

Para terminar, quero abordar o problema da competição. Penso que esta é salutar, desde que não seja embotada pela inveja. E sobretudo, se não derrogar os antigos códigos éticos. Porque a competição que condena o indivíduo a viver no seu metro quadrado e com os olhos permanentemente cravados no próprio umbigo, capaz de cilindrar o adversário na curva mais apertada, faz deste competidor um ser mais abominável que o próprio invejoso.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

O PECADO DA GULA

O pecado da gula anda associado aos excessos de comida e de bebida. E é, indiscutivelmente, um dos pecados mais recorrentes nos países católicos, apostólicos e romanos e protestantes da Europa Ocidental. Poder-se-á dizer, para evitar discriminacões obvias, que é o pecado mais recorrente de toda a Civilização Ocidental.

Quando os portugueses reflectem acerca da vida e dos seus valores mais altos, dizem normalmente que não há nada melhor do que comer, beber e... passear. E se atentarmos na prática dos povos da União Europeia, verificamos, com muita facilidade, que todos incorrem no mesmo tipo de delito, à luz da doutrina da Igreja: os protestantes do Norte bebendo álcool em excesso, os católicos do Sul, comendo e bebendo excessivamente.

No caso concreto do português comum, ainda que não conheça casos como os descritos por Rabelais no Pantagruel ou por Garcia Marquez nos Cem Anos de Solidão, poder-se-á dizer que se trata de um bom garfo e de um bom copo e a sua imaginação não tem limites: come bifes de atum, de espadarte, de porco, de peru e até de frango. Mas o verdadeiro português - o mais arreigado às tradições nacionais - adora sopinha de feijão e juliana, favas cozinhadas de todas as formas e feitios, feijoada à transmontana, grão com bacalhau e bacalhau cozinhado de trezentas e sessenta e cinco formas diferentes, nos anos comuns, rancho à transmontana, grão à campaniço, carne de porco à alentejana e... até cabra de chanfana, etc., porque a lista, podia ser mais exaustiva.

No domínio das sobremesas refiro o vulgar arroz-doce, o pudim, a musse de chocolate, o leitinho-creme, o molotove, a tarte de maçã, a tarte de amêndoa, a torta de laranja, a torta de cenoura, as farófias, as tijeladas, a baba de camelo, as barrigas-de-freira e os suspiros.

Quanto às bebidas é como o Jacinto: ou branco ou tinto. De preferência muito e português. E para rematar um opíparo repasto - nada de uísques ou conhaques-, uma bagaceira genuína, produzida por um parente, na província.

Lidos ou ouvidos os últimos parágrafos, qual de vós, caros leitores ou ouvintes, não cometeu já o pecado da gula, pelo menos em pensamento? Qual de vós terá esquecido o resto da sobremesa que o colesterol e a diabetes desaconselha, do bagacinho que o Código da Estrada pune, do pastelinho que a linha reprime?

Não falarei, por uma questão de decoro, das múltiplas acepções do verbo comer. Romanizados muito cedo, permanecemos irredutíveis seguidores desse grande povo que adorava o convívio e a mesa. Peço-vos encarecidamente que transmitais aos vossos filhos o gosto imoderado pela comida, para que jamais sejamos assimilados por hábitos alimentares estranhos à nossa tradição cultural. Confesso que sofreria imenso se visse os portugueses rendidos à cultura do hamburger e da Coca-Cola . O exemplo americano é paradigmático: grandes e desconformes físicos, passe a pequena redundância, mas um chocante desconhecimento no tocante ( conheço uma dona dos impostos, que substitui tocante por tange, na prosa das circulares. Acode-lhe, Orfeu!) aos prazeres da mesa. Preservemos, pois, caríssimos concidadãos, o queijo da serra genuíno, as fêveras e a entremeada dos nossos porcos de montado; os rojões à moda do Minho e a carne de porco à alentejana; o vinho das nossas adegas particulares, porque esta é a forma mais autêntica de afirmarmos a nossa identidade nacional .

O DILÚVIO

Bem vistas as coisas, tudo filtrado pelo inexorável tempo – ah, essa misteriosa entidade, que protege todos os déspotas! -, a vida decorria sem inquietações, até ao dia do dilúvio que devastou a nossa frágil casa e nos trouxe horas e mais horas de infindável sofrimento e desespero.

Eu quis ser firme e decidido como os antigos generais e aguentar-me à tona das águas e ser paciente e acreditar que tudo teria uma solução. Destruída a casa, perdida a caixa onde guardara todos os sonhos, senti-me triste e fraco e deixei que as lágrimas aumentassem o caudal das águas.

De certa maneira - prefiro a expressão francesa “dans un certain sens” -, senti o desespero dos bíblicos judeus na antiquíssima Babilónia; porém, nunca fiz promessas nem implorei a Deus.

As águas baixaram e a casa há-de reconstruir-se. Irrecuperável, só a caixa onde guardara todos os sonhos.

domingo, dezembro 03, 2006

VENEZA

Veneza tem mil canais,
Gôndolas e gondoleiros.
Tem muitas noivas aos ais
E rixas de marinheiros.

Andar nas ruas a pé
(palmilhar toda a cidade)
Vê-se o que Veneza é,
Na sua complexidade.

Becos, ruas e ruelas
E água por toda a parte.
Muitas raparigas belas,
Valiosas obras de arte.

Máscaras de mil modelos,
Que os carnavais são famosos.
Chocolates é só qu’rê-los,
Venham de lá os gulosos.

Recuerdos em murano,
- o vidro da região -,
passam de ano para ano,
de estação em estação.


A verdadeira beleza,
Desta cidade invulgar,
(e existe com certeza),
só a vislumbro do mar.

Quando o astro a alumia
- vista do grande Canal -,
ela é cor, ela é magia
é um mundo sem igual!

São Marcos é devoção,
Arquitectura e lazer,
As coisas da rel’gião,
Os palácios pra ver.

Na esplanada do Ravena,
Um café saborear.
Se a tarde ‘stiver amena,
Quem poderá olvidar?

Veneza tem mil canais,
E uma secreta beleza…
Durará mil anos mais?
Há-de durar com certeza!

sexta-feira, dezembro 01, 2006

IBERISMO

Republicação

O ministro dos comboios e dos aeroportos disse há dias, para desgraça e gáudio de uma direita velhaca e oportunista, que era iberista. E a dita direita fez um escarcéu de tal ordem, que o dito ministro e o seu chefe de governo sentiram necessidade de dar explicações.
Eu sou iberista e não tenho medo, e acrescento hoje, nem vergonha de afirmar o meu iberismo, alto e bom som, como não tenho quaisquer dúvidas em afirmar, como já anteriormente o fez Miguel Torga, que a minha pátria telúrica só termina nos Pirinéus. E mais, se sou habitante da Ibéria, sou ibérico, naturalmente. Coisa diferente é ser espanhol, porque hispânico também sou. E suponho que Natália Correia também se sentia hispânica.
No início do actual milénio, alguém afirmou que o milénio anterior foi o dos pequenos estados como Portugal e que o actual será o do seu desaparecimento. E provavelmente o vaticínio é correcto, mas nenhum de nós cá estará para certificar a sua justeza.
Sabe-se, igualmente, que na origem de Portugal estiveram apenas razões de índole política. Basta ler com atenção a "Formação de Portugal" do sábio Orlando Ribeiro, que não era propriamente um homem de esquerda, para perceber estas coisas comezinhas. O tempo, é mais do que evidente, foi cavando as diferenças que marcam hoje a singularidade de Portugal em relação aos restantes povos ibéricos.
É bom lembrar, no entanto, que os reis da dinastia de Avis tentaram a fusão dos reinos peninsulares e que a questão cantral passou sempre por saber quem havia de montar o cavalo do poder.
Seja como for, não é com esta gritaria toda que se discutem ideias. E isto já é peixeirada!
Eles sabem que a união ibérica lhes retiraria a capacidade que vão tendo de administrar a quinta.

quarta-feira, novembro 29, 2006

MÁRIO CESARINY

Mário Cesariny, Mário Cesariny de Vasconcelos, que não se via Mário, nem Cesariny, nem de Vasconcelos, faleceu no passado domingo.

Deixa-nos uma obra interessante, nomeadamente no domínio da poesia. Também foi pintor. É um nome incontornável do catálogo do surrealismo português.

Agora é esperar que o tempo coe o que tem de coar e dê a César o que de César é. Para constar deixo aqui um excerto de " um poema de luís cernuda", com o subtítulo "birds in the night", do livro pena capital, da Assírio e Alvim, que é um belo momento de liberdade e de denúncia da hipocrisia dos homens e das pátrias:
O governo francês - ou foi o governo inglês? - colocou uma lápide
Na casa número 8 de Great College Street, Camden Town, Londres,
Onde Rimbaud e Verlaine, par exótico, tiveram um quarto,
Viveram, beberam, trabalharam, fornicaram
Durante algumas semanas tormentosas.
Ao acto inaugural assistiram decerto embaixador e presidente da câmara,
Todos os que em vida de Verlaine e Rimbaud foram seus inimigos.

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Mári Cesariny

terça-feira, novembro 28, 2006

INSTANTES

À Adília Lopes, poeta.


Quando o sol –
O grande colorista de Cesário –
Inunda o dia
E os passarinhos
Dão concerto de piano
Nas roseiras
E nos arbustos
Do meu jardim,
Saboreio
Por vezes
A alegria.

É então
-gozando as delícias da preguiça -
Que mais concordo com Adília.

O resto,
Obviamente,
É conversa.

sexta-feira, novembro 24, 2006

ANTÓNIO GEDEÃO

Vedras, 19 de Fevereiro de 1997 - António Gedeão, poeta de mensagem facilmente apreensível, pereceu ontem no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Nos próximos dias, os jornais, a rádio e a televisão, falarão com grande cópia do autor da “Pedra Filosofal”, que um "baladeiro" dos anos sessenta popularizou e trouxe ao convívio com o grande público.
Passado o luto, abater-se-á sobre este autor de mensagem fácil, um silêncio de chumbo. É que poetas como Gedeão, que o povo ouve e estima, são muito perigosos.E depois, poesia que não for essencialmente forma não merece o interesse dos nossos iluminados críticos e dos nossos inefáveis professores universitários.
Que a ninguém pareça mal, mas não resisto a transcrever três versos de António Gedeão, que são a medida de uma incomensurável tolerância:

Ajuda-me a esquecer as tuas faltas
e a ignorar os teus crimes
para melhor te amar.
( do poema “espelhode duas faces”)

quarta-feira, novembro 22, 2006

O TEJO E LISBOA

A Lisboa e ao Tejo

A nobre Lisboa tem
O vasto Tejo a seus pés
‘ma porta aberta ao vaivém
Rumoroso das marés.


Este Tejo que o Poeta
Morada das musas quis,
Foi a companhia certa
Deste pequeno país.


Cais de partida e chegada,
Quantos segredos ouviu?
Nunca quis revelar nada
Das coisas todas que viu.

Companheiro e confidente,
Nas horas boas e más,
Esteve sempre presente,
Discreto, calmo, sagaz.

sábado, novembro 18, 2006

DO CIMO DESTA TORRE

Do cimo desta torre,
Que ajudei a construir,
Vejo, para além do casario,
Uma magnífica ponte
Sobre um majestoso rio.

Subitamente,
Ocorre-me Cesário Verde
E também velhas crónicas navais.
Gama,
Nas horas de borrasca,
À divina providência implorando
E Albuquerque,
Pequeno
Mas firme no seu posto,
Praças e mais praças conquistando.


Do cimo desta torre,
Que ajudei a construir,
Observo agora o risco de fumo
Do último avião
E esqueço-me das velhas crónicas
E dos heróis das batalhas navais.


Para além do casario,
Vejo apenas
Uma magnífica ponte
Sobre um rio.

Uma ponte magnífica
E um rio...

quinta-feira, novembro 16, 2006

AINDA A POESIA (nova versão)

(Recordando José Gomes Ferreira)

O teu perfume,
Ó grácil prostituta,
Enche e fecunda
A minha vida!

Alento dos dias,
dita ou cantada,
minha paz e guerra
de cada madrugada.

Do nosso amor
Cheio de magia
Há sempre parto,
Há sempre dor
E alegria.

domingo, novembro 12, 2006

O MAUAL DOS INQUISIDORES

OU
AS MISÉRIAS DO ESTADO NOVO


O MANUAL DOS INQUISIDORES, de António Lobo Antunes, é um romance que surpreende pela quantidade inusitada de narradores. Constituído por vinte e nove capítulos, a que o autor ora chama “comentário”(14) ora “relato” (15), sendo cada comentador e cada relator um narrador. As reincidências ocorrem nos chamados relatos: João (3), Titina (3), Paula (3), Milá (3) e Francisco (3). No tocante a comentários, não há reincidências. Os relatores antes enumerados são o filho (de Francisco e Isabel, a legítima), a governanta, a filha (de Francisco e da cozinheira), a amante de Francisco e o próprio Dr. Francisco. Toda a narrativa gira, por conseguinte, à volta deste Dr. Francisco, um prócere do chamado salazarismo e das pessoas que lhe estão mais próximas A inclusão de Titina no grupo dos relatores, compreende-se pelo facto de ela ser muito mais que uma mera governanta. D. Albertina é, com efeito, aquela que preenche o lugar deixado vago por Isabel, prodigalizando afecto ao filho e ao pai. Nomeadamente àquele, que ela considera seu filho. A inclusão de D. Albertina na categoria dos relatores, explica a exclusão de Isabel.

As narrativas com vários narradores não constituem novidade. Já nos finais do séc. XVIII, Choderlos de Laclos, nas suas celebérrimas Les Liaisons Dangereuses (1781), embora usando o género epistolar, construiu uma longa narrativa, na qual os autores de cartas também são muitos, mas sobressaindo largamente os protagonistas, Valmont e Marteuil. Em GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS, João de Melo, autor coetâneo de António Lobo Antunes, institui uma quantidade notável de narradores, para nos dar, igualmente, uma extensa e bela obra de ficção narrativa. Estes são, todavia, apenas dois exemplos que me ocorrem enquanto escrevo.

Esta polifonia extremada, que é indubitavelmente importante sob o ponto de vista técnico-narrativo, que os universitários tanto apreciam, é-o ainda mais no que concerne à matéria narrada e a uma relação que se me afigura óbvia: história/História. Neste romance do autor de A MORTE DE CARLOS GARDEL são narradas, em simultâneo, duas histórias: a do Dr. Francisco, que fora director-geral da Pide e depois ministro do Dr. Salazar, que há-de ficar a ser ministro toda a vida, como se ser ou ter sido ministro de Salazar fosse um cargo ou título para o resto da vida; a do país, governado por Salazar, primeiro, e por Marcelo Caetano, depois, onde pontificavam aventesmas como esta personagem deste ficção antunesiana
.

Ainda relativamente ao mais alto cargo que terá desempenhado, a questão não é completamente esclarecida. A mãe de Sofia, numa daquelas inúmeras analepses, fala, com ironia, do tempo em que teria sido secretário de Estado; porém, os empregados do próprio e os funcionários do Estado com os quais se relaciona, nomeadamente o major, tratam-no sempre por ministro. Esta ambiguidade remete-nos para a forma anormal como o poder de Estado era exercido, onde tudo gravitava à volta do Príncipe e do seu círculo de amigos, sendo pouco relevante o cargo. No reino do puro arbítrio, este Dr. Francisco mandava espancar, metia e tirava pessoas da prisão e podia enviar para Cabo Verde, quem lhe aprouvesse.




Numa narrativa com tantas vozes e personagens, convém desde já deixar esclarecido
que todos os relatores são personagens principais. Seguindo a ordem do texto: João, Titina, Paula, Milá e o próprio Dr. Francisco. Esta personagem, sempre presente ao longo dos relatos e comentários, é a primeira das principais e aquela à volta da qual se estrutura toda a intriga. Isabel também poderia ser incluída neste grupo de personagens; porém, o autor tê-la-á excluído pelas razões já aduzidas. Abandonou Francisco e o filho, trocando-os por Pedro, este, que, mais tarde, há-de ser o responsável pela destruição do casamento de João e pelo desaparecimento da quinta de Palmela. O comportamento adúltero de Isabel, que nunca quis responder à pergunta sacramental deste romance de António Lobo Antunes “Tu gostas de mim não gostas Isabel?”, há-de ter repercussões na vida de Francisco e das mulheres da quinta (a cozinheira e Odete), de Paula e de Milá, nomeadamente. Em suma, Isabel, para quem gostar ou não gostar não tinha qualquer significado, é a grande responsável pelo comportamento animalesco e louco de Francisco, que nunca conseguiu ultrapassar, num tempo de pensamento único e de princípios muito rígidos, o facto de a mulher o ter traído. É curioso notar também como aquilo que era importante para Francisco, não fazia qualquer sentido para Isabel: gostar.


HISTÓRIA(S)

De uma forma linear, a história deste romance de Lobo Antunes poder-se-ia resumir assim, como se se tratasse de um conto popular. Era uma vez um ministro e amigo de um Príncipe muito importante, que casou com uma senhora chamada Isabel. Levou-a para a sua quinta de Palmela, onde tinha governanta, cozinheira, caseiro, tractorista e outros trabalhadores. Cedo, a dita senhora se fartou da vida da quinta e do senhor da quinta, que começa a enganar com um tratante de nome Pedro, homem poderoso devido aos seus negócios. Do casamento do ministro com D. Isabel nascera entretanto um menino, de nome João, que é criado sem os cuidados da mãe e do pai.
A vida do casal, que nunca conhecera momentos de paixão, foi-se deteriorando, deteriorando, até que D. Isabel decidiu sair da quinta, abandonando o marido e o filho de tenra idade. Este cresceu com os cuidados e o afecto da governanta da casa, que se chamava Albertina. O pobre marido enganado pede a intervenção do chefe da polícia secreta do Príncipe, mas é aconselhado a não levantar ondas, porque o amante da senhora era homem de muito poder económico e financeiro e não podia ser molestado. Contrariado, o ministro acata a decisão do Príncipe, que lhe é transmitida pelo chefe da polícia secreta.
Daqui em diante assiste-se à degradação moral continuada do senhor da quinta de Palmela, que exerce o seu poder de uma forma despótica, nomeadamente no que concerne à sexualidade, onde predomina a mais pura das animalidades. Convém não esquecer que é o veterinário que assiste aos partos. Da relação do senhor da Quinta com a cozinheira nasce Paula, que é criada em Alcácer do Sal, longe dos progenitores, porque as aparências assim o exigiam.
O grotesco Dr. Francisco, no entanto, nunca esquece Isabel. E arranja mesmo uma namorada, a quem põe casa como se dizia então, e tenta que esta seja um duplo de Isabel. Através deste “arranjinho”, demonstra-se não só a arbitrariedade do poder, mas também o modo como se utilizavam abusivamente os meios do Estado, para que uma eminência do regime montasse o seu teatro. Milá chega a vestir roupas de Isabel e acompanha o Ministro a um encontro com Salazar, no forte de S. Julião.
Abreviando: o tempo passa e acontece o 25 de Abril. O universo de Francisco vai ruir como um baralho de cartas. Envelhece e é internado num lar, onde acaba por morrer. O casamento de João desfaz-se e a Quinta dá lugar a uma urbanização muito lucrativa para Pedro, o amante de Isabel. Paula ainda tenta ser herdeira de coisa nenhuma e João junta-se com uma empregada do Lar onde está internada D. Titina. Um fim muito triste, como diria, a rematar, o contador popular.



A QUINTA

A quinta é, por sinédoque, Portugal. O Dr. Francisco é o seu dono e nela exerce um poder despótico, que só foi desafiado por Pedro e Isabel. Naquele microcosmo, o proprietário é a Lei e o Direito. É amigo de Salazar e faz na sua propriedade o mesmo que o amigo faz ou permite que se faça no país. Traído pela mulher e impossibilitado de se vingar por razões de Estado, abusa sexualmente das mulheres da quinta, nomeadamente de Odete, a filha do caseiro, que é pouco mais do que uma criança. “Quietinha rapariga” há-de repetir Francisco inúmeras vezes, nos estábulos da quinta e contra as manjedouras. É assim como que um direito de pernada, mas com cheiro a urina e excrementos.


NOTAS FINAIS


A curiosidade maior deste romance do autor de Cus de Judas residirá, em minha opinião, no magistral tratamento do tempo, ou seja, no uso das anacronias, um incessante vaivém entre o presente da narrativa e a memória de cada narrador, que baralham qualquer leitor menos preparado.
As personagens, medíocres pela natureza das coisas, tendo sobrevivido ao grande naufrágio, com um pé no passado e outro no presente, apresentam marcas de profundos traumatismos, que as impossibilitam de compreender o presente. Dir-se-ia que o universo diegético é tão louco e perverso como perverso e louco foi o regime de Oliveira Salazar, que Lobo Antunes caricatura com imensa mestria.
Numa nota final, direi que algumas das personagens são totalmente inverosímeis, nomeadamente Titina que, apesar de ser governanta de um político amigo e ajudante do ditador de Santa Comba, não tinha que ser entendida em botânica. Num país de hortênsias, uma criada a falar de hidrângeas, francamente!


POST SCRIPTUM – Esta abordagem, necessariamente incompleta, fica a dever-se a questões extraordinárias da minha vida pessoal. Queria-a mais elaborada e minuciosa, porque considero O MANUAL DOS INQUISIDORES o melhor romance do autor. Porém, como não tenho mais tempo disponível para esta obra, deixo aqui o resultado despretensioso da minha leitura.

sexta-feira, novembro 10, 2006

AINDA A POESIA

( Recordando José Gomes Ferreira)



Prostituta fecunda
Que penetras na vida
De forma profunda.


Alento nas horas más,
Dita ou cantada
E instrumento de paz
Em cada madrugada.


Do nosso amor
Cheio de magia,
Há sempre parto,
Há sempre dor
E alegria.

quinta-feira, novembro 09, 2006

FELIZ É O DIA

(Homenagem a Al-Mu’tamid)


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que sinto o suave aroma
Das tuas pétalas brancas.


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que os meus olhos descansam
Nas tuas pétalas brancas.


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que toco ternamente
As tuas pétalas brancas.

Feliz é o dia, ó rosa!

quarta-feira, novembro 08, 2006

A LUSITANA MANIA

A lusitana mania
de esperar por quem não vem
provoca melancolia,
muito mal e nenhum bem.

Sempre de calças na mão
Ou esta à esmola estendida.
Tão estranha condição,
Tornou-se um modo de vida.

Era preciso matar
Esse rei Sebastião,
que não pára de enganar
a nossa triste nação!


Ao mito do desejado
Dê-se um combate eficaz.
Traz este país castrado
Ou capado, tanto faz.

sexta-feira, novembro 03, 2006

D' ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO

1. As chamadas “cartas de guerra” de António Lobo Antunes, reunidas no volume D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO, são um poderoso documento sobre a guerra colonial e as condições em que a mesma se desenrolava. Embora dirigidas a sua mulher, o autor constrói ao longo dos dois anos de comissão, isto é, entre 7 Janeiro de 1971 e 30 de Janeiro de 1973, através de múltiplas notações, um libelo acusatório contra as abjectas condições a que os homens estavam sujeitos, nos aquartelamentos das zonas de guerra.

2. Porém, o conteúdo destas cartas não se esgota nos valiosos apontamentos sobre a guerra e na profunda relação amorosa com Maria José e ainda com a outra Maria José, a quem, até ao nascimento, chamará muitas vezes o “cafeco”, que significa criança em quimbundo. Através das cartas apreendemos também o mundo de relações do autor e da extrema atenção que presta a todos aqueles com quem se relacionava e com quem se continua a relacionar através da escrita de aerogramas. Todos os familiares lhe conhecem o gosto pela leitura e muitos enviam-lhe livros e revistas. De resto, é até curioso notar que António sugere a Maria José que sugira livros que gostaria de ler, mas que não está disposto a comprar, porque é absolutamente proibido gastar dinheiro. Esta sua natureza poupadinha vai ser motivo de um tópico. Também merecerão destaque neste trabalho testemunhos extraordinários que relevam do ponto de vista da antropologia e ainda impressões sobre arte e literatura.

3. Estamos, pois, em presença de uma obra ímpar, que, apesar dos mil milhões de beijos enviados por António a Maria José, a destinatária, extravasa vastamente a temática amorosa. Dir-se-ia até, que, expurgadas das fórmulas mais ou menos canónicas dos começos e dos impagáveis modos de terminar, estas cartas são, obviamente, muito mais do que simples cartas de amor. Decidir se este é ou não o primeiro grande romance do autor de memória de elefante, é tarefa que não assumimos neste pequeno e despretensioso estudo.

4. No entanto, não temos nenhum problema em afirmar peremptoriamente, que, doravante, estas cartas terão de ser lidas e relidas, por todos os que vierem a debruçar-se sobre os catorze anos da Guerra Colonial. Pois esta determinou toda a vida portuguesa, quer no rectângulo europeu, onde se procedia à incorporação, treino e mobilização de homens, quer nas chamadas Províncias Ultramarinas, onde se situavam os múltiplos teatros de operações. E marca ainda hoje, volvidos mais de trinta anos, de forma indelével, gerações de portuguesa.

5. Embora sejam o testemunho subjectivo de um indivíduo, jovem médico e aspirante a escritor, as cartas possuem a força das confissões espontâneas. A visão do autor é dada silenciosamente, na puridade dos seus aposentos, como notas de um quotidiano, que, apesar da distância, quer partilhar com a mulher amada. Assim, cremos que estas cartas, primordialmente (?) amorosas, são mais objectivas do que os relatórios militares e as notícias necrológicas, sabendo nós que uns e outros eram vigiados e censurados. Acresce a tudo isto, que, também nós, ainda que em teatros operacionais e época diferentes, cumprimos serviço militar obrigatório, na menina dos olhos dos colonialistas, isto é, em Angola. Não sabendo as surpresas que o tempo ainda nos pode reservar, António Lobo Antunes terá sido, até ao momento presente e através das suas cartas, aquele que, de 1961 a 1975, melhor verbalizou a vivência da Guerra Colonial.

6. “Porque é que vieram interromper-nos tão brutalmente?” A pergunta é formulada na carta de 1.6.71, escrita no Chiúme, Leste de Angola, quando o então alferes miliciano Lobo Antunes, cumpria o serviço Militar obrigatório. É dirigida a Maria José, sua mulher, ainda estudante e grávida de Maria José, a primogénita do casal. O autor estava no fim do mês quinto da sua estada em Angola e Chiúme era já o seu terceiro teatro de operações. Passara anteriormente por Gago Coutinho, onde, apesar de tudo, tinha uma certa vida de relação. No Ninda, conhecera Ernesto Melo Antunes a quem tece rasgados elogios e do qual será amigo para sempre. Chiúme é o buraco dos buracos, o lugar onde a DO chega com menos regularidade e há o célebre P., na messe, que não é, propriamente, um modelo de higiene. É no Chiúme, finalmente, que o autor faz referência explícita, reproduzindo de cor os dois versos finais, à Canção X de Camões. E finalmente, porque essa célebre composição de Camões já andava pressentida há muito, nestas cartas.

7. A pergunta em epígrafe, que admite várias interpretações, podia ter sido formulada por dezenas de milhar de jovens soldados que, num dado momento das suas vidas, viam as suas vidas interrompidas. As interrupções eram múltiplas: as luas-de-mel, os cursos, a aprendizagem de profissões, os namoros, muitos e muitos projectos futuros, no limite, a própria vida. Era tudo tão violento, nomeadamente, para quem já tinha alguma instrução escolar e política. O povoléu, ignaro e obediente, psiquicamente treinado para combater pela Pátria, batia-se, quase sempre, até aos limites da insensatez. Quantas narrativas de actos de grande bravura terão ficado por contar?

7.1. Passados apenas quinze dias e já o jovem alferes, médico de formação, notava que iria “pagar um preço muito caro pela possibilidade de voltar a viver” em Portugal (carta de 31.1.71.). As notações sobre a guerra são agora frequentes. Mais tarde há-de, já calejado e aparentemente mais conformado, poupar Maria José aos relatos horripilantes de mortos, amputados, feridos e desaparecidos. À exaltação inicial, vai opor-se um homem mais ponderado e quiçá mais conformado. “Escrevo-te de manhã, no gabinete da enfermaria, enquanto espero três evacuados” (carta de 10.2.71); porém, e também para terminar este subtópico, aqui ficam mais palavras de Lobo Antunes: “ Dos feridos gravíssimos de ontem – três sujeitos cheios de balas – não há notícias, mas espero que se salvem. Entretanto o morto – o guia – foi abandonado na mata às feras”( carta de 11.2.71).

7.2. A guerra não era apenas operações e mais operações militares e mortos e feridos e evacuados. Daí, a pertinência da observação que segue: “ É incrível a guerra que aqui fazemos, sozinhos e sem meios, contra um inimigo cada vez mais numeroso e bem preparado” (carta de 11.2.71). E onde muitos outros meteram o bedelho, passe o plebeísmo, como nota o futuro autor de As Naus: /…/ o nosso exército prolifera e vive no meio de uma confusão e de uma desordem indescritíveis” e mais à frente: “Chegam hoje os pilotos(17) nos seus pássaros gigantes, e não sei de onde é que estes franceses vêm e por que diabo colaboram nisto” (carta de 15.2.71).

7.3. E apesar da guerra ser uma actividade colectiva, onde acontecem os actos mais bárbaros e as solidariedades mais grandiosas, António sabe que ele e os restantes camaradas de armas, nomeadamente os mais esclarecidos, combatem fora da sua terra e em defesa de uma causa iníqua. Combatem pelos execráveis passadores de angolares por escudos, pelos novos-ricos que vão às festas em Luanda e que tudo fazem para que as suas crias masculinas não conheçam os tenebrosos teatros de operações. Não espanta, pois, esta constatação: “Cada um vive quase somente para si próprio e para as cartas que recebe, preocupado com a própria sobrevivência e mais nada” (carta de 17.3.71). Esta guerra, decididamente, era sentida como algo que era imposto e cujo absurdo as elites iam interiorizando. Não admira, assim, que, no pós-25 de Abril, a situação nunca mais se tivesse estabilizado. Todos os sobreviventes queriam voltar ao verdadeiro solo pátrio e ao seio das suas famílias. Cá, no rectângulo europeu, ficou célebre a palavra de ordem: NEM MAIS UM SOLDADO PARA AS COLÓNIAS!


7.4. Não eram, contudo, os tempos da incorporação e da mobilização, que marcavam o início das angústias familiares. A guerra começava a ser tema obrigatório para os rapazes e respectivas famílias, por altura dos quinze/dezasseis anos. Apesar de tudo, António Lobo Antunes terá iniciado o serviço militar já depois dos vinte e cinco anos, facto que lhe permitiu uma abordagem mais adulta e pontuada por uma imensa discrição. Porém, não deixam de ser dignas de registo as seguintes palavras de António:” O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui” (carta de 15.5.71). É curioso notar que o futuro escritor, que se referia aos guerrilheiros por terroristas e que até mantinha uma relação amigável com o responsável da Pide, em Gago Coutinho, há-de deixar cair aquela denominação e esta amizade no esquecimento.

7.5. António Lobo Antunes é filho de uma futura grande família do reino. O pai é médico especialista e de nomeada. O irmão mais velho segue, segundo cremos, as peugadas do pai. António já é médico. E os restantes membros do clã hão-de desempenhar papéis noutras áreas, a saber: advocacia, música e diplomacia, nomeadamente. O nosso mancebo, compreensível mas tardiamente mancebo, vai transmitir, através das suas cartas – as cartas a Maria José -, a sua visão da guerra colonial e das actividades correlativas. A primeira grande nota de uma situação burlesca é dada ainda durante a viagem, na carta de 14.1.71, onde o futuro escritor descreve o ambiente das refeições, no paquete: “ Ao jantar e ao almoço, uma velha oxigenada, com duplo queixo e chinelos, toca piano com uma dificuldade míope, e ao lanche (chá e bolos), servido por uma nuvem de criados, a orquestra «Vera Cruz», qual deles com a melhor pinta de chulo lisboeta, magrinhos, brilhantinados, de olhar maroto, esfolam música de cabaré de putas.” Tendo em conta o puritanismo da sociedade portuguesa do início da década de setenta do século passado, imagine o putativo leitor a cara daquela panóplia de tias e avós, se lessem aquela prosa enérgica e realista de António.

7.6. A guerra é uma fonte de medos por excelência: os actores têm medo de morrer, de ficar estropiados, de ser preteridos no amor, de ser esquecidos por amigos, familiares e até pela mulher amada. Não espanta, assim, que o futuro autor de Cus de Judas , logo na primeira carta, a de 7.1.71, em tom imperativo, mas com patética sinceridade, escreva: “Lembra-te de mim”. De resto, esta fórmula vai ser repetida assim ou modificada em dezenas e dezenas de cartas: “lembra-te de mim, sempre/../”, “ /…/ tem paciência e lembra-te, de quando em quando, de mim”, “/…/ lembra-te de mim, tem saudades minhas e gosta um bocadinho do teu marido desterrado”, “Minha noiva linda, nunca te esqueças de mim”. António teme até – e o seu temor é tão humano!...-, que os outros o esqueçam. Daí esta tão comovente confissão nobreana: /…/ espero que continuem a pensar no António coitado/…/” Nobre, o espantoso poeta do SÓ, há-de ser referido explicitamente em duas das cartas e está presente, implicitamente, em muitas outras. Este António, tal como o poeta, é aquele que está longe da sua terra, das coisas e dos seres que lhe são queridos e que vive, também ele, só e corroído pela saudade, já muito longe da sua “torre de leite”. “92 dias separam-nos. Todas as manhãs desconto um. Vivo desta aritmética da saudade/…/”, escreve na carta de 28.6.71.


8. “Porque é que vieram interromper-nos tão brutalmente?” António casara em Agosto de 1970 e embarcou para Angola em 6 de Janeiro de 1971. O casal, apesar dos meses entretanto decorridos e de Maria José já se encontrar grávida, vivia ainda uma prolongada lua-de-mel. Era um dos efeitos da guerra. Vivia-se o dia presente como se do último se tratasse. A guerra conferia a tudo, e ao amor também, um carácter de urgência. Deixo aqui um verso de Ramos Rosa: “Não posso adiar o amor para outro século”.

8.1. As cartas escritas por António são apaixonadíssimas. Aqui se transcrevem algumas das fórmulas iniciais, que, de certo modo, atestam essa mesma paixão: “Meu querido amor”, com noventa e quatro ocorrências; “Minha jóia querida”, repetida em quarenta e cinco missivas”; “Minha querida jóia”, surge quarenta e uma vez; para “Meu amor querido”, contamos vinte e seis; e “Meu amor” é utilizada em quinze cartas. Porém, o trabalho de joalheiro vai mais longe, utilizando ainda as fórmulas seguintes: “Minha jóia”, “Minha jóia adorada”, “Minha querida jóia linda”, “Minha amada jóia”, “Minha jóia preciosa e querida”, “Minha jóia zangada”, etc.
Ainda no âmbito destes começos, note-se o emprego de “Minha linda senhora” e também “Minha alma amada”, que, ainda que este amor se alimente de carne, remete para códigos amorosos antigos que o autor conhece bem e que não utilizará por acaso. Nomeadamente a fórmula “Minha alma amada”, que configura uma identidade espiritual plena entre os dois amantes. Maria José é o primeiro leitor de António e este confere grande importância à sua opinião. Devido à separação, Melo Antunes também há-de ler excertos, em primeira-mão, e dar alguns conselhos ao jovem escritor.
Como todos os casais, mesmo à distância, os “amuos” também acontecem, ainda que para António sejam sol de pouca dura. Diz o que tem a dizer, directa e incisivamente, e retoma a relação com a ternura de sempre. É nestes momentos que inicia as cartas com expressões diferentes das habituais: “Maria José”, “Sr.ª D. Maria José” e “Minha Senhora”´. O ciúme também não está completamente ausente, quando, numa das cartas, diz que se vive bem, em sua casa, na sua ausência. Outros exemplos poderiam ser dados.

8.2. Os finais das cerca de trezentas cartas são memoráveis e muitos deles constituem verdadeiros hinos ao amor. Outros, por sua vez, tocam-nos pelo insólito e pelo imenso humor de António. É justo que se diga, neste preciso momento, que os finais das cartas são profundamente caóticos. Há sempre uns milhões de beijos para acrescentar, um “lembra-te de mim”, mais beijos, um “GTS”, etc., que nos dão conta da profunda solidão em que vive este homem e da falta física que lhe faz a mulher amada.

8.3. Nós sabemos, de saber de experiência feito, quanto doíam as carências afectivas. Sabemos, com saber de experiência feito, com se iludia essa dor. Sabemos, com saber de experiência feito, a quanta sordidez nos obrigou a guerra. Houve outros Antónios, mas deve ser aqui transcrito este testemunho: “ As minhas saudades tuas são imensas. É tão triste esta longuíssima separação” (carta de 10.5.71) e diz-lhe imediatamente: “Com nenhuma mulher dormirei senão contigo, a mãe do Toino – ou da Zézinha. Milhões de beijos /…/” (carta de 10.5.71). E no entanto, este homem morre de desejo: “Coloco o meu pénis na forquilha do teu corpo” (carta de 20.1.71) e remata esta carta com ” Milhões e milhões de saudades apaixonadas, de beijos, de festas, de carícias e de abraços/…/”.
Dias depois, com os sentidos já na ordem, se é que pode falar assim, escreve: “ o teu Van Gogh (tinha tido um problema numa orelha) adora-te, minha gazelinha adorada, meu diamante querido, minha pérola e minha estrela” (carta de 21.1.71); todavia, o seu amor nunca deixa de ser superlativo: “Gosto tanto tanto tanto de ti” (carta de 27.1.71). Alguns dias depois, o desejo voltava: “Eu queria tanto voltar a ver-te! Deves estar, com certeza, cada vez mais bonita. E gorda. E barriguda. Apetece-me tanto deitar-me em cima de ti e penetrar-te” (carta de 1.2.71). Passados alguns meses, já próximo do primeiro reencontro, escreve: “Hoje tenho andado com uma terrível vontade sexual. Prepara-te para coitos homéricos” (carta de 13.7.71) e num dos aerogramas seguintes reitera:” Gosto tudo de ti, meu amor querido. E prepara-te para tetraquotidianos combates singulares” (carta de 20.7.71).
Mais palavras para quê?


9. A escrita é a obsessão das obsessões de António Lobo Antunes, que também é, como havemos de ver mais tarde, um grande devorador de livros. Não dissemos grande leitor, propositadamente, ainda que do seu currículo conste uma plêiade de autores de narrativas, que começa com Homero, no séc.VIII a.C. e chega aos seus contemporâneos, estrangeiros e nacionais. Há neste homem um dado relevante: é detentor de uma memória prodigiosa, uma memória onde tudo se inscreve e nada se apaga. Tem, na verdade, uma memória de elefante.

9.1. Antes de avançarmos neste ponto que denominamos a obsessão das obsessões, queremos aqui realçar o facto de Lobo Antunes ter deixado manuscritos em Portugal, os quais manda destruir a Maria José, na carta de 27.3.71. E diz mesmo que ficaria muito zangado, se, porventura, encontrasse as suas “historietas miseráveis”, quando viesse a Portugal. Mas quem tem acompanhado a vida do autor, sabe que escreveu desde sempre. Pelo menos, é essa a ideia que deixa passar em todas as entrevistas, quando perguntado sobre o assunto. E as cartas reiteram definitivamente essa ideia, e, outra ainda, a da escrita como trabalho oficinal. Atente-se nas próprias palavras do autor acerca do Voo: “ O problema tem sido reduzir a minha prosa a uma simplicidade bem legível. Cortar o pescoço à eloquência”, Chiúme, 7.6.71. Eloquente!

9.2. A escrita é o oxigénio de Lobo Antunes. Parece predestinado para escrever livros e daí que, no interior da própria família, o olhem diferentemente. As palavras do próprio autor: “No fundo agrada-me que assim seja, sempre gostei muito do amor, sobretudo do que eles têm por mim, que, não sei se já reparaste, é diferente do que sentem pelos meus irmãos, porque eles têm a sensação de que possuo qualquer coisa de irresponsável e imprevisível e de que farei um dia algo de heróico e de louco e de sublime, que eles não sabem bem o que será mas que os mantém em suspense”, carta de 12.4.71. E curiosamente, esta é uma das poucas missivas em que não fala da “história” ou histórias, tanto faz.

9.3. A inscrição da sua escrita, nesta grande narrativa epistolar, é iniciada com uma intenção: ”Qualquer dia recomeço a escrever (carta de 29.1.71)” e dois dias depois avisa:”/…/começo, de novo, a pensar no livro/…/”. Na carta de 7.2.71, escreve: “ Começo a assentar e a serenar. Comecei, talvez por isso, e a escrever um novo Dilúvio /…/ “Na missiva de 11.2.7, assegura: “ A história cá se vai fazendo com o pouco tempo que para ela tenho, com facilidade e sem muletas.”; para asseverar, cinco dias depois: “ A minha história lá avança entretanto, e parece-me genial………”. A 24 de Fevereiro, afirma: “/…/ Tenho avançado o Dilúvio contra ventos e marés, e espero tê-lo pronto e genial antes das férias.” Apesar do tom optimista em que se expressa; nota-se já, todavia, que algo não vai inteiramente bem com este livro, que trazia iniciado de Lisboa e que há-de abandonar.

9.4. Na carta de 13.3.71, António, eufórico, revela a Maria José: “Ontem passou-me uma coisa pela cabeça e comecei a escrever uma história completamente nova, com uma facilidade incrível. É uma coisa que me tem entusiasmado para lá de todas as palavras, e que excede, mesmo, tudo quanto me julgava capaz de fazer”. E não se cansa de tecer elogios ao seu novo projecto, que conta ainda apenas com dez páginas, mas que será um romance “assombroso” e o mais “revolucionário” de todos os que já lera. E assevera que não está “a ser pedante, nem aldrabão, nem exagerado”. É o dia triunfal de Lobo Antunes que, de resto, já era um velho conhecido de Fernando António e conhecia a génese dos heterónimos.

9.5. É verdadeiramente impressionante a quantidade de autores que, aos vinte e oito anos de idade, António já tinha lido e sobre os quais se permite emitir juízos de valor. Conhece os autores sul-americanos fundamentais, que se expressam em português e castelhano. E, apesar da “sua tenra idade” e da ausência de obra publicada, olha-os de cima para baixo (é assim que quero dizer). Gabriel Garcia Marquez, e, sobretudo, Cem Anos de Solidão, Carlos Fuentes e Cortázar, são dos raros autores, do subcontinente, que se salvam da mira sempre muito crítica do futuro autor de A Morte de Carlos Gardel.

9.6. Os franceses, que conhece abundantemente, passam sem grandes críticas. La Chute de Camus é uma coisa bem escrita. A Peste, lida aos dezasseis anos, era uma coisa extraordinária; mas aos vinte e oito, já era maçadora. De resto, parece não apreciar muito a literatura solar de Camus. Nem uma só referência a O Estrangeiro. André Gide, o esteta, é referido várias vezes, mas sem adjectivos. Copia-lhe o método do caderninho. Acusa Balzac “pela cristalização do romance”. Conhece o antiquíssimo Cyrano de Bergerac. Mostra grande interesse pela Shafo de Alphonse Daudet e lê Samuel Beckett. Quem exerce, no entanto, um grande fascínio sobre o jovem escritor é Céline, que chega a considerar o maior, ainda que determinados juízos de valor reflictam muito o estado de alma do momento em que são formulados.
Ainda uma pequena nota referente à língua francesa. António revela um grande conhecimento da língua – e não será desapropriado dizê-lo – um certo gozo em utilizar expressões da língua de Victor Hugo, ora para valorizar a beleza de Maria José, ora para dizer quanto detestava aquela situação que lhe roubava dois anos da sua vida. Aqui fica o registo de algumas expressões francesas:”tristesse”, “três hasardeux”, “à la longue”, “soyons heureux”, “à en mourir”, “environement”, “refaire une beauté”, “je m’en fiche”, je deteste ça”, etc.

9.7. Quanto aos espanhóis da península, Lobo Antunes não dá conta dos seus conhecimentos. Trata familiarmente Don Miguel de Unamuno, atribui um verso de Lorca a Rosalía de Castro e faz uma referência elogiosa a Jorge Semprún, que lhe foi revelado por Melo Antunes.


9.8. Ainda no que concerne a autores estrangeiros da sua predilecção, para além dos sul-americanos já anteriormente referidos, avultam Joyce e Faulkner. Do primeiro diz: “ /…/ o melhor do mundo é James Joyce” (carta de 7.7.71) e quer o seu retrato, na “nossa casinha”, em lugar de destaque. Em relação a Faulkner, diz que gostaria de ter escrito todos os seus livros. E na mesma carta (Carta de 23.2.72), numa condusão propositadamente torrencial e incoerente e por metonímia, refere Hemingway e Stendhal e Flaubert e e Thomas Mann, etc. e depois lembra-se de Tolstoi, “que é o maior de todos”. Outros autores são citados: Franz Kafka, Gunther Grass, Truman Capote, etc. E talvez seja justo dizer, neste ponto, que, apesar das nossas omissões, a carta de 23.2.72, escrita na Marimba, fixa a árvore genealógica de António Lobo Antunes.

9.9. Era espectável que António Lobo Antunes nos desse mais notícias de autores portugueses. Afirma, curiosamente, que os três maiores escritores portugueses são Camões, Pessoa e Bocage. Deste último lamenta o facto de não o conhecer tão bem como devia. E de andar associado ao anedotário.
Lê ensaios de Jorge de Sena, contos de Almada, romances de Namora e descasca em O’Neill. Acerca da obra deste último, As andorinhas não têm restaurante, diz tratar-se de uma série de prosas sem categoria nenhuma, /…/ Qualquer coisa de fotonovela e nem um cheiro daquela atmosfera russa indefinível/…/, que eu tanto gosto de respirar” (carta de 27.2.71).
Acha que Soeiro Pereira Gomes seguiu demasiado Os Capitães da Areia de Jorge Amado, na Engrenagem; contudo, tece rasgados elogios ao neo-realismo, por ter dado voz ao país real. De Redol lê A Barca dos Sete Lemos e não faz quaisquer comentários.
Não é natural, em nossa humílima opinião, que o futuro autor do Esplendor de Portugal, se tenha esquecido dos grandes novelistas portugueses de oitocentos: Garrett, Camilo e Eça. E ainda de nomes do séc. XX como José Cardoso Pires e Agustina Bessa Luís.
É estranho, não é?


10. António Lobo Antunes revela uma grande sensibilidade pelas questões de natureza antropológica. Ao longo das cartas são abundantes os seus testemunhos, quer no que toca ao modo de organização das populações, à volta dos chefes tribais; quer no que concerne às suas crenças e práticas ancestrais. Não sendo um documento insubstituível ou sequer de referência, as cartas revelam aquele que numa delas se despede como “marido, pai e escritor”, como um homem de grande sensibilidade e de cultura.

10.1. Os merengues, que também servem para avisar os guerrilheiros ( para Lobo Antunes ainda são terroristas) da saída das tropas, “são fabulosos de ritmo e de beleza selvagem. Ao centro, um grupo de homens percute os tambores, e a malta dança de roda, velhos e novos, mulheres com filhos às costas, etc., mexendo-se com uma espantosa facilidade e um ritmo extraordinário, cantando ao mesmo tempo uma melopeia estranhíssima” (carta de 15.2.71).
Ainda que desde sempre “o tricotar subterrâneo” da escrita o tenha absorvido, António é por formação um homem de ciência, mas nem por isso deixa de assistir a certas cerimónias autóctones: “Hoje, domingo, passei a manhã, numa cerimónia curiosa, a assistir è esconjuração de uma doente, para que a doença saísse de dentro dela” e mais à frente: “três homens tocavam tambor e a malta dançava e cantava à volta/…/” (carta de 7.3.71).
Porém, nem todas as práticas eram benfazejas: “Ontem, em consequência de uma feitiçaria, amarraram uma velha a um quimbo e queimaram-na viva no Ninda, rito ainda frequente nestas paragens”(carta de 24.3.71).

10.2. A sexualidade é um daqueles temas que nunca lhe poderia passar ao lado. E a sua condição de médico, permitia-lhe um conhecimento provavelmente vedado a outros: “/…/ os casos impotência masculina são frequentíssimos, e todos os dias oiço tristes queixas de machos desiludidos, exibindo pénis formidáveis e inúteis” (carta de 12.3.71).
Constata que “ Não existe homossexualidade, a não ser numas vagas ligações helénicas entre velhos e miúdos, que se desfazem com a puberdade destes. O beijo é ignorado, as carícias também, e a fornicação faz-se de lado, numa imobilidade de preguiça, durante horas, sem se tocarem, numa indiferença absoluta” (carta de 2.4.71).
A desfloração de uma garota nativa por um coxo grotesco, é assim descrita:” Um coxo/…/ foi-se a uma garota de uns nove anos e, como eles dizem, «tirou-lhe o cabaço»: em vez de oito anos de prisão maior celular., a malta teve uma alegria enorme. Seguem-se oito dias de batuque”.


11. Luanda e os luandenses brancos não mereceram a simpatia do futuro grande escritor. A capital de Angola perpassa pelos olhos do artista como “uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano/…/” e os seus habitantes brancos “/…/têm o mesmo indefinível aspecto de vendedores de automóveis/…/” dos da Metrópole. As mulheres são “/…/ tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas.”Nesta carta, a de 16.1.71, fala-nos ainda do Grafanil, que era o grande entreposto humano e mercantil que alimentava toda a guerra, naquele imenso território. Estas eram apenas as primeiras impressões.
Na carta de 21.3.71, Luanda volta a estar sob a mira do artista. Sente-se irritado com a vida da capital, onde nada falta e a fazer fé nas revistas, que publicam as fotografias, há “bailes” e “festas” e “eleições de misses”, enquanto lá longe, nos perímetros dos aquartelamentos, os militares sofrem por todos aqueles que se divertem e os olham com desdém. Mas apesar de não querer pormenorizar por razões óbvias, não deixa de afirmar: “/…/ os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável.” Em suma, são gente “execrável”, que não merece as potencialidades de Angola e aponta-os como ”os descendentes dos degredados”.

12. As notações meteorológicas de Lobo Antunes, para além de fidedignas, dão-nos também “uma visão de artista”. Na curta estada em Luanda e na companhia de outros militares, visita a ilha, mas percebe-se que não gosta do que vê e descobre que “O céu nunca é azul mas maciço, grosso, espesso, triste (carta de 17.1.71). Luanda é apenas uma escala a caminho do Leste. Já em Gago Coutinho, vejamos como o autor descreve as grandes chuvadas: “/…/ têm caído aqui chuvadas gigantescas; em cinco minutos fica tudo alagado de charcos e poças imensas, /…/ as trovoadas, fantásticas de intensidade, desabam em cima de nós numa cadência de Apocalipse” (carta de 31.1.71).
A estação das chuvas vai cessar. Aproxima-se o tempo do cacimbo. As palavras do autor: “O calor tem sido, nestes últimos dias, diabólico, e o céu permanece imperturbável. É o início do cacimbo, mas as noites frias ainda não começaram” (carta de 12.3.71). Está-se, com efeito, num período de transição. Precava-se o leitor, que a coisa vem em crescendo: “ontem à noite desabou aqui uma tempestade imensa, a maior a que até agora assisti, com relâmpagos a caírem por todos os lados, numa sucessão ininterrupta, e os trovões a rebolarem num ruído enorme /…/ “ Mas ainda não era tudo. As trovoadas em Angola, às quais também assistimos, eram fenómenos excepcionais. De novo as palavras do autor das cartas: “Tudo tremia e oscilava. Os raios eram tantos que parecia dia /…/, as casas saíam do escuro numa claridade ofuscante, e o som da água era verdadeiramente ensurdecedor”(carta de 8.8.71). Poderíamos transcrever outros excertos, igualmente realistas e belos, porque as notações de ordem climatérica são abundantes, nestas que também serão, com toda a certeza, comoventes cartas de amor. Cada leitor que tenha passado por Angola, pela imensidão do espaço e da noite, na época das chuvas, sabe que a forma de dizer é a de um artista da palavra, mas a matéria substantiva já está ali toda.


13. Há um só aspecto nestas cartas – e por que não dizer uma linha de força -, que nos chocou do princípio ao fim: a relação de António com o dinheiro e as restantes coisas materiais. Sabemos que era casado e que contraíra determinadas responsabilidades, mas também sabemos que a sua família vivia muito acima da média das famílias daqueles soldados - e até muitos graduados - , que nada tinham e que por isso mesmo viam na tropa uma forma de fugir a quotidianos ainda mais pobres. E que o seu vencimento de alferes e os dinheiros recebidos do exercício da sua profissão junto das comunidades locais, formavam uma massa monetária verdadeiramente invejável.
António conta os tostões um a um e sabe a totalidade do dinheiro que já enviou, que irá receber, aquele com que fica e ainda amealha, para depois comprar um carrinho e outras coisas. Compra arte indígena, feita por encomenda, mas confessa depois que tinha gasto uma ridicularia de angolares.
Sempre preocupado com a economia doméstica, lembra várias vezes Maria José da necessidade do envio da certidão de nascimento da filha e dá-lhe instruções relativamente a um laboratório de produtos para bebés.
Ainda neste capítulo, e porque também revela uma personalidade, destaque-se o envio de uísques e outras bebidas por diversos portadores. António não bebe, mas sabe que o material é bom e que a compra é um bom negócio.


Antunes, António Lobo, D’este viver aqui neste papel descripto, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª Ed. Out/2005.


Manuel Barata

quinta-feira, novembro 02, 2006

SANTA IRIA - 9

A vila de Santa Iria
tem tanta tanta beleza...
È uma altiva princesa,
que o meigo Tejo acaricia!

SANTA IRIA - 7 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 6 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 5 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 4 (VIA RARA)


O parque de Via Rara - um dos múltiplos lugares de Santa Iria de Azóia -, onde estão a ser construídas as piscinas, é um espaço de lazer de muita beleza e que é bem aproveitado pela população.
Tem sido timbre do executivo da Junta de Freguesia zelar pelos espaços verdes e promover a sua criação. Se outras obras não tivessem sido feitas, esta atitude ambiental da autarquia já seria obra de tomo.

quarta-feira, novembro 01, 2006

BENFICA MAGNUS EST

( Escrito antes do jogo Benfica-FCP,
realizado na Luz, na época 2005-2006.
Foi enviado a alguns dos meus amigos.
Robert marcou o golo da vitória).


Dá talento ao glorioso,
Musa, para ganhar ao Porto!
Faz Portugal venturoso,
Dá-lhe alegria e conforto!

Faz renascer a ‘sperança
De mais triunfos futuros,
Que os do Norte na lembrança
Levem só castigos duros.

Um a zero já é bom
E castigo suf’ciente
Para aquela pobre gente
Não se crer uma naçom!

domingo, outubro 29, 2006

OS AMIGOS

Os amigos, os verdadeiros amigos, são aqueles que, nas curvas apertadas da vida, se recusam a integrar o pelotão de fuzilamento; são aqueles que, nas situações de doença, nos visitam na cama do hospital e nos trazem uma palavra de esperança; são aqueles que, sendo amigos do coração, nunca nos pedem o impossível; são aqueles que, em suma, participam das nossas alegrias e tristezas.
Sendo este o meu conceito de amizade, resta-me a consolação de conhecer muita gente, que me cumprimenta e cumprimento cordialmente.

SHERAZADE

Deve a vasta humanidade
Aos cornos de Xariar
A divina Sherazade
E seus contos de encantar;


A gentil e meiga irmã
- de seu nome Dinarzade -,
que, cedo, sobre a manhã,
acordava Sherazade.


“ Minha irmã, se não dormis…”
E começa a narração.
Sherazade tudo diz
Para encantar o Sultão.


Histórias mil desfia
(Oh, qual delas a melhor?)
E o tirano ludibria
Calmamente e sem temor.


Salvando assim a vida
Às donzelas de Bagdade,
Foi, claro, muito atrevida,
Mas ganhou a liberdade.

MEMÓRIA

(Em memória de minha avó paterna,
Maria,
de seu nome completo).

Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
No teu banquinho sentada
Os olhos muito abertos
Mas já sem brilho.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
De viuvez vestida
Ansiosamente olhando
Mas não vendo nada.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
Velho tronco devastado
Pelo simples fluir
Inexorável dos dias.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
Vivo o lume
Os olhos muito abertos
Mas já sem brilho.

quarta-feira, outubro 25, 2006

PALESTINA MINHA AMADA

I
(Jerusalém é o teu nome cidade)
Ruy Belo

Trazemos nas veias
A cor das tuas pedras mártires.

Por isso perseveramos,
Por isso te amamos,
Por isso continuamos a morrer por ti.


II

No sul do Líbano,
Na faixa de Gaza,
Nas margens do Jordão,
Na diáspora multicontinental,
Choramos em silêncio as tuas mágoas
Cidade mãe,
Cidade santa,
Jerusalém.

(Porque tu choras
As nossas mágoas também).



III

Não haverá napalm,
Não haverá tnt,
Não haverá traição,
Que ponham fim
A esta vontade desmedida de vencer.

E um dia,
Pela estrada de Jericó,
Voltaremos:
A Ramala,
A Belém,
A Lida,
A Jerusalém.


IV

Para comer laranjas em Jafa!
Laranjas doces e suculentas,
Porque em todo o mundo
Não há laranjas como as de Jafa.

sábado, outubro 21, 2006

A SAUDADE

A saudade é portuguesa,
Dizem os mais entendidos...
Causa é desta moleza
Que nos traz tão distraídos.


Um dia vou ao labirinto
Onde a dizem guardada
Ou presa, até consinto,
Para a matar à facada.


Temos de mudar de vida.
Isto assim não pode ser.
Tanta cabeça perdida
E Portugal por fazer.


Vai às malvas, ó saudade,
Não te arvores em carraça!
Deixa o povo em liberdade,
Que já chega de desgraça.

sábado, outubro 14, 2006

MARTIN RT HANNAH

Continuo a ler, interessadíssimo, o romance Martin et Hannah de Catherine Clément. Martin é o filósofo Martin Heidegger, indubitavelmente um dos espíritos mais brilhantes do séc. XX. Hannah Arendt é uma intelectual judia, antiga aluna e amante do pensador alemão. A outra personagem do triângulo amoroso é a legítima de Heidegger, Elfride, que, apesar de quase tudo saber da duplicidade da vida amorosa do marido, desde 1950, aceita disputar até ao fim não o papel de melhor amante, mas o de melhor adjuvante na construção de uma obra filosófica.
Catherine Clément, inclemente com Heidegger e sobretudo com Elfride, traça desta o retrato de uma mulher de formação universitária que adere ao nazismo convictamente. Luteriana, Elfride continuava luteriana de alma. Obstinada, de olhos abertos para a degradação da Alemanha, para a cloaca de Berlim onde acabavam os detritos da República alemã. Era preciso pôr fim a isto, reduzir a podridão a cinzas e regressar aos verdadeiros valores de perfeição que Martin incarnava: o amor pelos cimos, a neve límpida, a natureza, a saúde, o ar puro e o alto pensamento. Até aqui, dir-se-ia que a legítima de Heidegger pugnava por valores perfeitamente razoáveis. Quem, ainda hoje, não aceitaria os valores acima enumerados? O problema era outro. Elfride não aceitava o fim do império austro-húngaro. A República e a democracia eram as fontes de todas as enfermidades. Principalmente, porque representavam o dictat dos vencedores e a humilhação da Alemanha.
Vejamos como Catherine Clément não deixa margens para qualquer ambiguidade: Do fundo do seu coração, Elfride esperava a borrasca que varresse os miasmas da democracia. Limpa dos travestis berlinenses, das prostitutas, dos comunistas, dos banqueiros, dos artistas. A Alemanha purificada de judeus. Para varrer com a decadência, era preciso um vento muito forte e selvagem. Esse vento forte e selvagem era o “pequeno austríaco”. Ganharia eleições democráticas em 1933 e instauraria o III Reich. Até aqui Elfride estivera sempre à frente de Martin. Agora era o jovem professor que adere aos ideais hitlerianos e aceita, ainda que só durante dez meses, uma reitoria.
Catherine Clément, professora de filosofia com vasta obra publicada, parece, muitas vezes, condescendente com Heidegger. Parece querer transferir o odioso da adesão do filósofo ao nazismo para a pessoa de Elfride. Parece. Porque o mesmo Martin, pensador católico e entusiasta de Hitler, afinal de contas, até tinha, desde 1924, uma amante judia. Eclético era, seguramente. No final do livro, resolverei a magna questão do parece (1).
1. Este texto sobre o livro de Catherine Clément data do ano 2000.