domingo, outubro 29, 2006

OS AMIGOS

Os amigos, os verdadeiros amigos, são aqueles que, nas curvas apertadas da vida, se recusam a integrar o pelotão de fuzilamento; são aqueles que, nas situações de doença, nos visitam na cama do hospital e nos trazem uma palavra de esperança; são aqueles que, sendo amigos do coração, nunca nos pedem o impossível; são aqueles que, em suma, participam das nossas alegrias e tristezas.
Sendo este o meu conceito de amizade, resta-me a consolação de conhecer muita gente, que me cumprimenta e cumprimento cordialmente.

SHERAZADE

Deve a vasta humanidade
Aos cornos de Xariar
A divina Sherazade
E seus contos de encantar;


A gentil e meiga irmã
- de seu nome Dinarzade -,
que, cedo, sobre a manhã,
acordava Sherazade.


“ Minha irmã, se não dormis…”
E começa a narração.
Sherazade tudo diz
Para encantar o Sultão.


Histórias mil desfia
(Oh, qual delas a melhor?)
E o tirano ludibria
Calmamente e sem temor.


Salvando assim a vida
Às donzelas de Bagdade,
Foi, claro, muito atrevida,
Mas ganhou a liberdade.

MEMÓRIA

(Em memória de minha avó paterna,
Maria,
de seu nome completo).

Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
No teu banquinho sentada
Os olhos muito abertos
Mas já sem brilho.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
De viuvez vestida
Ansiosamente olhando
Mas não vendo nada.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
Velho tronco devastado
Pelo simples fluir
Inexorável dos dias.


Vejo-te sempre ali
Junto à lareira
Vivo o lume
Os olhos muito abertos
Mas já sem brilho.

quarta-feira, outubro 25, 2006

PALESTINA MINHA AMADA

I
(Jerusalém é o teu nome cidade)
Ruy Belo

Trazemos nas veias
A cor das tuas pedras mártires.

Por isso perseveramos,
Por isso te amamos,
Por isso continuamos a morrer por ti.


II

No sul do Líbano,
Na faixa de Gaza,
Nas margens do Jordão,
Na diáspora multicontinental,
Choramos em silêncio as tuas mágoas
Cidade mãe,
Cidade santa,
Jerusalém.

(Porque tu choras
As nossas mágoas também).



III

Não haverá napalm,
Não haverá tnt,
Não haverá traição,
Que ponham fim
A esta vontade desmedida de vencer.

E um dia,
Pela estrada de Jericó,
Voltaremos:
A Ramala,
A Belém,
A Lida,
A Jerusalém.


IV

Para comer laranjas em Jafa!
Laranjas doces e suculentas,
Porque em todo o mundo
Não há laranjas como as de Jafa.

sábado, outubro 21, 2006

A SAUDADE

A saudade é portuguesa,
Dizem os mais entendidos...
Causa é desta moleza
Que nos traz tão distraídos.


Um dia vou ao labirinto
Onde a dizem guardada
Ou presa, até consinto,
Para a matar à facada.


Temos de mudar de vida.
Isto assim não pode ser.
Tanta cabeça perdida
E Portugal por fazer.


Vai às malvas, ó saudade,
Não te arvores em carraça!
Deixa o povo em liberdade,
Que já chega de desgraça.

sábado, outubro 14, 2006

MARTIN RT HANNAH

Continuo a ler, interessadíssimo, o romance Martin et Hannah de Catherine Clément. Martin é o filósofo Martin Heidegger, indubitavelmente um dos espíritos mais brilhantes do séc. XX. Hannah Arendt é uma intelectual judia, antiga aluna e amante do pensador alemão. A outra personagem do triângulo amoroso é a legítima de Heidegger, Elfride, que, apesar de quase tudo saber da duplicidade da vida amorosa do marido, desde 1950, aceita disputar até ao fim não o papel de melhor amante, mas o de melhor adjuvante na construção de uma obra filosófica.
Catherine Clément, inclemente com Heidegger e sobretudo com Elfride, traça desta o retrato de uma mulher de formação universitária que adere ao nazismo convictamente. Luteriana, Elfride continuava luteriana de alma. Obstinada, de olhos abertos para a degradação da Alemanha, para a cloaca de Berlim onde acabavam os detritos da República alemã. Era preciso pôr fim a isto, reduzir a podridão a cinzas e regressar aos verdadeiros valores de perfeição que Martin incarnava: o amor pelos cimos, a neve límpida, a natureza, a saúde, o ar puro e o alto pensamento. Até aqui, dir-se-ia que a legítima de Heidegger pugnava por valores perfeitamente razoáveis. Quem, ainda hoje, não aceitaria os valores acima enumerados? O problema era outro. Elfride não aceitava o fim do império austro-húngaro. A República e a democracia eram as fontes de todas as enfermidades. Principalmente, porque representavam o dictat dos vencedores e a humilhação da Alemanha.
Vejamos como Catherine Clément não deixa margens para qualquer ambiguidade: Do fundo do seu coração, Elfride esperava a borrasca que varresse os miasmas da democracia. Limpa dos travestis berlinenses, das prostitutas, dos comunistas, dos banqueiros, dos artistas. A Alemanha purificada de judeus. Para varrer com a decadência, era preciso um vento muito forte e selvagem. Esse vento forte e selvagem era o “pequeno austríaco”. Ganharia eleições democráticas em 1933 e instauraria o III Reich. Até aqui Elfride estivera sempre à frente de Martin. Agora era o jovem professor que adere aos ideais hitlerianos e aceita, ainda que só durante dez meses, uma reitoria.
Catherine Clément, professora de filosofia com vasta obra publicada, parece, muitas vezes, condescendente com Heidegger. Parece querer transferir o odioso da adesão do filósofo ao nazismo para a pessoa de Elfride. Parece. Porque o mesmo Martin, pensador católico e entusiasta de Hitler, afinal de contas, até tinha, desde 1924, uma amante judia. Eclético era, seguramente. No final do livro, resolverei a magna questão do parece (1).
1. Este texto sobre o livro de Catherine Clément data do ano 2000.

ERICEIRA - 8

ERICEIRA - 7

ERICEIRA - 6

ERICEIRA - 4

Foi amor à primeira vista. Dura há mais de vinte e cinco anos e resiste a todas as intempéries. E não há nesta relação nenhum roteiro sentimental, no sentido corrente da expressão.
Lembro-me da primeira vez como se tivesse sido ontem. Passagem pela Rinchoa, onde visitei o Manel Vaz que se debatia com uma teimosa e aborrecida febre-de-malta, Foz do Lizandro, finalmente, a Ericeira! E depois uma mariscada com o João Maria e a Natália, que eram, nessa altura, dois excelentes amigos. A Zélia estava grávida da Filipa.
É certo que não me agrada tanta construção, o inferno dos fins-de-semana, um certo novo-riquismo garrido e acéfalo. De segunda a quinta-feira, fora da curta época balnear, a Ericeira continua a ser uma pacata vila piscatória, de população envelhecida, onde é sempre agradável cavaquear nas esplanadas ou no interior dos seus cafés soalheiros. E escrever. E olhar demoradamente o mar que, mais que qualquer outro elemento da natureza, modelou o nosso carácter colectivo.

segunda-feira, outubro 09, 2006

LISBOA

Há nas ruas de Lisboa
Uma graça, um encanto,
Que nelas inda ressoa
Um pregão em cada canto.


O cauteleiro teimoso
Inda persiste, coitado!
Deixou o grito ruidoso,
Vende o jogo sem enfado.


Galhofeiras, as varinas
Têm tanta, tanta graça!
Suas línguas viperinas
São a pimenta da praça.


Eu sinto tanta saudade
Dos ardinas barulhosos.
Coloriam a cidade
Com pregões tão saborosos!...


À tardinha, no Rossio,
Oh, era bonito de ver!
Os ardinas, em desvario,
Sempre a pregar e a correr.


Mudou tanto esta cidade!
Marcas do tempo imparável,
Causam-me tanta saudade...
Oh, mudança inexorável!

QUADRAS

Á cidade de Silves



Vivo com esta mania
Das moirinhas encantadas.
São restos da fantasia
Dos velhos contos de fadas.

Entre Silves e Granada,
Procuro as lindas gazelas.
Ò moirinhas de Granada,
Doces, amáveis e belas!

Nas margens do rio Arade,
Dou largas ao desvario.
Ò divina Sherazade,
Salta das águas do rio!

Em Silves, com Ibn ‘ Ammâr,
Queria, se pudesse ser,
De moiras tagarelar
E um vinho doce beber.

Al Mu ‘Tamid saudar
Com respeitosa emoção.
Poeta, mais devagar…
Ai, tanta divagação!

Isto é apenas a parte
Do que em Silves penso e sinto.
Oh, cidade prenhe de arte!
Oh, meu cálice de absinto!

sábado, outubro 07, 2006

VISÃO BÍBLICA

Chovia. Era Setembro ou Outubro. E a chuva penetrava e amolecia a terra.

Subitamente, numa clareira esplendorosa vislumbrei uma pequena estátua de barro. E á sua volta, luminoso e com gestos lentos, um artista que a retocava com um indizível primor.

Por fim, o artista olhou demoradamente a sua obra e à distância de um metro soprou forte. A estátua movimenta-se, dá a mão criador e ambos caminham impudicamente felizes.

Era o sexto dia. E a maravilha das maravilhas estava criada.

sexta-feira, outubro 06, 2006

O TRABALHO DOS POETAS

Duro e perseverante é o trabalho dos verdadeiros artífices da palavra.
Quem, como os poetas, tem de escolher, entre milhares, a palavra mais suave ou violenta, mais subtil ou rude, mais elegante ou grosseira, mais rica ou humilde, mais poética ou prosaica, mais aristocrática ou plebeia?
O Romantismo semeou a ideia de que os poetas eram seres de inspiração divina. E poetas houve que ajudaram a criar esse mito. Nada mais contrário à verdade. O grande Bocage, apesar de ter passado à História com fama de grande repentista, é óbvio que não respondia ao abade José Agostinho de Macedo em quadras de decassílabos heróicos.
Todo o trabalho de criação exige paciência infinita e muita dedicação. E sobretudo amor. Falo dos poetas como poderia falar dos pintores, dos músicos e dos escultores.

quinta-feira, outubro 05, 2006

SE EU FOSSE COMO CATULO

Se eu fosse como Catulo,
Poeta de inspiração,
Em teu corpo, amor, havia
De gravar mil versos, mil!,
De grata recordação.

Com os dedos e os lábios,
lascivos e enlouquecidos,
nele havia de escrever
a mais pura poesia.

Disse bem, amor, havia!

quarta-feira, outubro 04, 2006

SE EU FOSSE COMO CAMÕES

Se eu fosse como Camões,
Havia de te fazer,
Amor, versos geniais,
Muitas trovas de encantar!

Pintar-te-ia morena
E de outras cores sadias.
Blusa vermelha decerto
E calças de ganga azul.

Assim irias à fonte
- Discreta como se vê -,
Leda e bela ao meu encontro.

E haveria de deixar
Teu rosto ruborizado
Com mil beijos, mil... ou mais!

DISCURSO

Muitos de nós que temos mãos e temos pés,
Muitos de nós que fazemos adeus aos comboios nas estações,
Muitos de nós que passeamos o conformismo pelas ruas da cidade,
Muitos de nós,
Um dia,
Talvez um dia,
Saibamos quão inúteis foram os nossos braços,
As nossas pernas,
As nossas bocas,
Os nossos ouvidos
E os nossos cérebros.


Talvez um dia,
Quando violarem o silêncio da nossa inutilidade
E já for demasiado tarde,
Vejamos então como eram irreais
Os nossos primorosos raciocínios.


Nesse dia,
Não haverá lugar para lágrimas
E lamentações.
Nesse dia,
Morreremos como cães:
Sem palavras,
Sem sonhos,
Acéfalos,
Loucos.

domingo, outubro 01, 2006

CIÚME

A tua ausência fere-me
E dói tanto,
Que os meus inquietos pensamentos
São como pássaros jovens
Embalados pela vertigem do voo.


Soubesse eu ao menos
Onde e com quem partilhas
O suave e doce perfume do teu corpo.