quarta-feira, novembro 29, 2006

MÁRIO CESARINY

Mário Cesariny, Mário Cesariny de Vasconcelos, que não se via Mário, nem Cesariny, nem de Vasconcelos, faleceu no passado domingo.

Deixa-nos uma obra interessante, nomeadamente no domínio da poesia. Também foi pintor. É um nome incontornável do catálogo do surrealismo português.

Agora é esperar que o tempo coe o que tem de coar e dê a César o que de César é. Para constar deixo aqui um excerto de " um poema de luís cernuda", com o subtítulo "birds in the night", do livro pena capital, da Assírio e Alvim, que é um belo momento de liberdade e de denúncia da hipocrisia dos homens e das pátrias:
O governo francês - ou foi o governo inglês? - colocou uma lápide
Na casa número 8 de Great College Street, Camden Town, Londres,
Onde Rimbaud e Verlaine, par exótico, tiveram um quarto,
Viveram, beberam, trabalharam, fornicaram
Durante algumas semanas tormentosas.
Ao acto inaugural assistiram decerto embaixador e presidente da câmara,
Todos os que em vida de Verlaine e Rimbaud foram seus inimigos.

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Mári Cesariny

terça-feira, novembro 28, 2006

INSTANTES

À Adília Lopes, poeta.


Quando o sol –
O grande colorista de Cesário –
Inunda o dia
E os passarinhos
Dão concerto de piano
Nas roseiras
E nos arbustos
Do meu jardim,
Saboreio
Por vezes
A alegria.

É então
-gozando as delícias da preguiça -
Que mais concordo com Adília.

O resto,
Obviamente,
É conversa.

sexta-feira, novembro 24, 2006

ANTÓNIO GEDEÃO

Vedras, 19 de Fevereiro de 1997 - António Gedeão, poeta de mensagem facilmente apreensível, pereceu ontem no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Nos próximos dias, os jornais, a rádio e a televisão, falarão com grande cópia do autor da “Pedra Filosofal”, que um "baladeiro" dos anos sessenta popularizou e trouxe ao convívio com o grande público.
Passado o luto, abater-se-á sobre este autor de mensagem fácil, um silêncio de chumbo. É que poetas como Gedeão, que o povo ouve e estima, são muito perigosos.E depois, poesia que não for essencialmente forma não merece o interesse dos nossos iluminados críticos e dos nossos inefáveis professores universitários.
Que a ninguém pareça mal, mas não resisto a transcrever três versos de António Gedeão, que são a medida de uma incomensurável tolerância:

Ajuda-me a esquecer as tuas faltas
e a ignorar os teus crimes
para melhor te amar.
( do poema “espelhode duas faces”)

quarta-feira, novembro 22, 2006

O TEJO E LISBOA

A Lisboa e ao Tejo

A nobre Lisboa tem
O vasto Tejo a seus pés
‘ma porta aberta ao vaivém
Rumoroso das marés.


Este Tejo que o Poeta
Morada das musas quis,
Foi a companhia certa
Deste pequeno país.


Cais de partida e chegada,
Quantos segredos ouviu?
Nunca quis revelar nada
Das coisas todas que viu.

Companheiro e confidente,
Nas horas boas e más,
Esteve sempre presente,
Discreto, calmo, sagaz.

sábado, novembro 18, 2006

DO CIMO DESTA TORRE

Do cimo desta torre,
Que ajudei a construir,
Vejo, para além do casario,
Uma magnífica ponte
Sobre um majestoso rio.

Subitamente,
Ocorre-me Cesário Verde
E também velhas crónicas navais.
Gama,
Nas horas de borrasca,
À divina providência implorando
E Albuquerque,
Pequeno
Mas firme no seu posto,
Praças e mais praças conquistando.


Do cimo desta torre,
Que ajudei a construir,
Observo agora o risco de fumo
Do último avião
E esqueço-me das velhas crónicas
E dos heróis das batalhas navais.


Para além do casario,
Vejo apenas
Uma magnífica ponte
Sobre um rio.

Uma ponte magnífica
E um rio...

quinta-feira, novembro 16, 2006

AINDA A POESIA (nova versão)

(Recordando José Gomes Ferreira)

O teu perfume,
Ó grácil prostituta,
Enche e fecunda
A minha vida!

Alento dos dias,
dita ou cantada,
minha paz e guerra
de cada madrugada.

Do nosso amor
Cheio de magia
Há sempre parto,
Há sempre dor
E alegria.

domingo, novembro 12, 2006

O MAUAL DOS INQUISIDORES

OU
AS MISÉRIAS DO ESTADO NOVO


O MANUAL DOS INQUISIDORES, de António Lobo Antunes, é um romance que surpreende pela quantidade inusitada de narradores. Constituído por vinte e nove capítulos, a que o autor ora chama “comentário”(14) ora “relato” (15), sendo cada comentador e cada relator um narrador. As reincidências ocorrem nos chamados relatos: João (3), Titina (3), Paula (3), Milá (3) e Francisco (3). No tocante a comentários, não há reincidências. Os relatores antes enumerados são o filho (de Francisco e Isabel, a legítima), a governanta, a filha (de Francisco e da cozinheira), a amante de Francisco e o próprio Dr. Francisco. Toda a narrativa gira, por conseguinte, à volta deste Dr. Francisco, um prócere do chamado salazarismo e das pessoas que lhe estão mais próximas A inclusão de Titina no grupo dos relatores, compreende-se pelo facto de ela ser muito mais que uma mera governanta. D. Albertina é, com efeito, aquela que preenche o lugar deixado vago por Isabel, prodigalizando afecto ao filho e ao pai. Nomeadamente àquele, que ela considera seu filho. A inclusão de D. Albertina na categoria dos relatores, explica a exclusão de Isabel.

As narrativas com vários narradores não constituem novidade. Já nos finais do séc. XVIII, Choderlos de Laclos, nas suas celebérrimas Les Liaisons Dangereuses (1781), embora usando o género epistolar, construiu uma longa narrativa, na qual os autores de cartas também são muitos, mas sobressaindo largamente os protagonistas, Valmont e Marteuil. Em GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS, João de Melo, autor coetâneo de António Lobo Antunes, institui uma quantidade notável de narradores, para nos dar, igualmente, uma extensa e bela obra de ficção narrativa. Estes são, todavia, apenas dois exemplos que me ocorrem enquanto escrevo.

Esta polifonia extremada, que é indubitavelmente importante sob o ponto de vista técnico-narrativo, que os universitários tanto apreciam, é-o ainda mais no que concerne à matéria narrada e a uma relação que se me afigura óbvia: história/História. Neste romance do autor de A MORTE DE CARLOS GARDEL são narradas, em simultâneo, duas histórias: a do Dr. Francisco, que fora director-geral da Pide e depois ministro do Dr. Salazar, que há-de ficar a ser ministro toda a vida, como se ser ou ter sido ministro de Salazar fosse um cargo ou título para o resto da vida; a do país, governado por Salazar, primeiro, e por Marcelo Caetano, depois, onde pontificavam aventesmas como esta personagem deste ficção antunesiana
.

Ainda relativamente ao mais alto cargo que terá desempenhado, a questão não é completamente esclarecida. A mãe de Sofia, numa daquelas inúmeras analepses, fala, com ironia, do tempo em que teria sido secretário de Estado; porém, os empregados do próprio e os funcionários do Estado com os quais se relaciona, nomeadamente o major, tratam-no sempre por ministro. Esta ambiguidade remete-nos para a forma anormal como o poder de Estado era exercido, onde tudo gravitava à volta do Príncipe e do seu círculo de amigos, sendo pouco relevante o cargo. No reino do puro arbítrio, este Dr. Francisco mandava espancar, metia e tirava pessoas da prisão e podia enviar para Cabo Verde, quem lhe aprouvesse.




Numa narrativa com tantas vozes e personagens, convém desde já deixar esclarecido
que todos os relatores são personagens principais. Seguindo a ordem do texto: João, Titina, Paula, Milá e o próprio Dr. Francisco. Esta personagem, sempre presente ao longo dos relatos e comentários, é a primeira das principais e aquela à volta da qual se estrutura toda a intriga. Isabel também poderia ser incluída neste grupo de personagens; porém, o autor tê-la-á excluído pelas razões já aduzidas. Abandonou Francisco e o filho, trocando-os por Pedro, este, que, mais tarde, há-de ser o responsável pela destruição do casamento de João e pelo desaparecimento da quinta de Palmela. O comportamento adúltero de Isabel, que nunca quis responder à pergunta sacramental deste romance de António Lobo Antunes “Tu gostas de mim não gostas Isabel?”, há-de ter repercussões na vida de Francisco e das mulheres da quinta (a cozinheira e Odete), de Paula e de Milá, nomeadamente. Em suma, Isabel, para quem gostar ou não gostar não tinha qualquer significado, é a grande responsável pelo comportamento animalesco e louco de Francisco, que nunca conseguiu ultrapassar, num tempo de pensamento único e de princípios muito rígidos, o facto de a mulher o ter traído. É curioso notar também como aquilo que era importante para Francisco, não fazia qualquer sentido para Isabel: gostar.


HISTÓRIA(S)

De uma forma linear, a história deste romance de Lobo Antunes poder-se-ia resumir assim, como se se tratasse de um conto popular. Era uma vez um ministro e amigo de um Príncipe muito importante, que casou com uma senhora chamada Isabel. Levou-a para a sua quinta de Palmela, onde tinha governanta, cozinheira, caseiro, tractorista e outros trabalhadores. Cedo, a dita senhora se fartou da vida da quinta e do senhor da quinta, que começa a enganar com um tratante de nome Pedro, homem poderoso devido aos seus negócios. Do casamento do ministro com D. Isabel nascera entretanto um menino, de nome João, que é criado sem os cuidados da mãe e do pai.
A vida do casal, que nunca conhecera momentos de paixão, foi-se deteriorando, deteriorando, até que D. Isabel decidiu sair da quinta, abandonando o marido e o filho de tenra idade. Este cresceu com os cuidados e o afecto da governanta da casa, que se chamava Albertina. O pobre marido enganado pede a intervenção do chefe da polícia secreta do Príncipe, mas é aconselhado a não levantar ondas, porque o amante da senhora era homem de muito poder económico e financeiro e não podia ser molestado. Contrariado, o ministro acata a decisão do Príncipe, que lhe é transmitida pelo chefe da polícia secreta.
Daqui em diante assiste-se à degradação moral continuada do senhor da quinta de Palmela, que exerce o seu poder de uma forma despótica, nomeadamente no que concerne à sexualidade, onde predomina a mais pura das animalidades. Convém não esquecer que é o veterinário que assiste aos partos. Da relação do senhor da Quinta com a cozinheira nasce Paula, que é criada em Alcácer do Sal, longe dos progenitores, porque as aparências assim o exigiam.
O grotesco Dr. Francisco, no entanto, nunca esquece Isabel. E arranja mesmo uma namorada, a quem põe casa como se dizia então, e tenta que esta seja um duplo de Isabel. Através deste “arranjinho”, demonstra-se não só a arbitrariedade do poder, mas também o modo como se utilizavam abusivamente os meios do Estado, para que uma eminência do regime montasse o seu teatro. Milá chega a vestir roupas de Isabel e acompanha o Ministro a um encontro com Salazar, no forte de S. Julião.
Abreviando: o tempo passa e acontece o 25 de Abril. O universo de Francisco vai ruir como um baralho de cartas. Envelhece e é internado num lar, onde acaba por morrer. O casamento de João desfaz-se e a Quinta dá lugar a uma urbanização muito lucrativa para Pedro, o amante de Isabel. Paula ainda tenta ser herdeira de coisa nenhuma e João junta-se com uma empregada do Lar onde está internada D. Titina. Um fim muito triste, como diria, a rematar, o contador popular.



A QUINTA

A quinta é, por sinédoque, Portugal. O Dr. Francisco é o seu dono e nela exerce um poder despótico, que só foi desafiado por Pedro e Isabel. Naquele microcosmo, o proprietário é a Lei e o Direito. É amigo de Salazar e faz na sua propriedade o mesmo que o amigo faz ou permite que se faça no país. Traído pela mulher e impossibilitado de se vingar por razões de Estado, abusa sexualmente das mulheres da quinta, nomeadamente de Odete, a filha do caseiro, que é pouco mais do que uma criança. “Quietinha rapariga” há-de repetir Francisco inúmeras vezes, nos estábulos da quinta e contra as manjedouras. É assim como que um direito de pernada, mas com cheiro a urina e excrementos.


NOTAS FINAIS


A curiosidade maior deste romance do autor de Cus de Judas residirá, em minha opinião, no magistral tratamento do tempo, ou seja, no uso das anacronias, um incessante vaivém entre o presente da narrativa e a memória de cada narrador, que baralham qualquer leitor menos preparado.
As personagens, medíocres pela natureza das coisas, tendo sobrevivido ao grande naufrágio, com um pé no passado e outro no presente, apresentam marcas de profundos traumatismos, que as impossibilitam de compreender o presente. Dir-se-ia que o universo diegético é tão louco e perverso como perverso e louco foi o regime de Oliveira Salazar, que Lobo Antunes caricatura com imensa mestria.
Numa nota final, direi que algumas das personagens são totalmente inverosímeis, nomeadamente Titina que, apesar de ser governanta de um político amigo e ajudante do ditador de Santa Comba, não tinha que ser entendida em botânica. Num país de hortênsias, uma criada a falar de hidrângeas, francamente!


POST SCRIPTUM – Esta abordagem, necessariamente incompleta, fica a dever-se a questões extraordinárias da minha vida pessoal. Queria-a mais elaborada e minuciosa, porque considero O MANUAL DOS INQUISIDORES o melhor romance do autor. Porém, como não tenho mais tempo disponível para esta obra, deixo aqui o resultado despretensioso da minha leitura.

sexta-feira, novembro 10, 2006

AINDA A POESIA

( Recordando José Gomes Ferreira)



Prostituta fecunda
Que penetras na vida
De forma profunda.


Alento nas horas más,
Dita ou cantada
E instrumento de paz
Em cada madrugada.


Do nosso amor
Cheio de magia,
Há sempre parto,
Há sempre dor
E alegria.

quinta-feira, novembro 09, 2006

FELIZ É O DIA

(Homenagem a Al-Mu’tamid)


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que sinto o suave aroma
Das tuas pétalas brancas.


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que os meus olhos descansam
Nas tuas pétalas brancas.


Feliz é o dia, ó rosa!,
Em que toco ternamente
As tuas pétalas brancas.

Feliz é o dia, ó rosa!

quarta-feira, novembro 08, 2006

A LUSITANA MANIA

A lusitana mania
de esperar por quem não vem
provoca melancolia,
muito mal e nenhum bem.

Sempre de calças na mão
Ou esta à esmola estendida.
Tão estranha condição,
Tornou-se um modo de vida.

Era preciso matar
Esse rei Sebastião,
que não pára de enganar
a nossa triste nação!


Ao mito do desejado
Dê-se um combate eficaz.
Traz este país castrado
Ou capado, tanto faz.

sexta-feira, novembro 03, 2006

D' ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO

1. As chamadas “cartas de guerra” de António Lobo Antunes, reunidas no volume D’ESTE VIVER AQUI NESTE PAPEL DESCRIPTO, são um poderoso documento sobre a guerra colonial e as condições em que a mesma se desenrolava. Embora dirigidas a sua mulher, o autor constrói ao longo dos dois anos de comissão, isto é, entre 7 Janeiro de 1971 e 30 de Janeiro de 1973, através de múltiplas notações, um libelo acusatório contra as abjectas condições a que os homens estavam sujeitos, nos aquartelamentos das zonas de guerra.

2. Porém, o conteúdo destas cartas não se esgota nos valiosos apontamentos sobre a guerra e na profunda relação amorosa com Maria José e ainda com a outra Maria José, a quem, até ao nascimento, chamará muitas vezes o “cafeco”, que significa criança em quimbundo. Através das cartas apreendemos também o mundo de relações do autor e da extrema atenção que presta a todos aqueles com quem se relacionava e com quem se continua a relacionar através da escrita de aerogramas. Todos os familiares lhe conhecem o gosto pela leitura e muitos enviam-lhe livros e revistas. De resto, é até curioso notar que António sugere a Maria José que sugira livros que gostaria de ler, mas que não está disposto a comprar, porque é absolutamente proibido gastar dinheiro. Esta sua natureza poupadinha vai ser motivo de um tópico. Também merecerão destaque neste trabalho testemunhos extraordinários que relevam do ponto de vista da antropologia e ainda impressões sobre arte e literatura.

3. Estamos, pois, em presença de uma obra ímpar, que, apesar dos mil milhões de beijos enviados por António a Maria José, a destinatária, extravasa vastamente a temática amorosa. Dir-se-ia até, que, expurgadas das fórmulas mais ou menos canónicas dos começos e dos impagáveis modos de terminar, estas cartas são, obviamente, muito mais do que simples cartas de amor. Decidir se este é ou não o primeiro grande romance do autor de memória de elefante, é tarefa que não assumimos neste pequeno e despretensioso estudo.

4. No entanto, não temos nenhum problema em afirmar peremptoriamente, que, doravante, estas cartas terão de ser lidas e relidas, por todos os que vierem a debruçar-se sobre os catorze anos da Guerra Colonial. Pois esta determinou toda a vida portuguesa, quer no rectângulo europeu, onde se procedia à incorporação, treino e mobilização de homens, quer nas chamadas Províncias Ultramarinas, onde se situavam os múltiplos teatros de operações. E marca ainda hoje, volvidos mais de trinta anos, de forma indelével, gerações de portuguesa.

5. Embora sejam o testemunho subjectivo de um indivíduo, jovem médico e aspirante a escritor, as cartas possuem a força das confissões espontâneas. A visão do autor é dada silenciosamente, na puridade dos seus aposentos, como notas de um quotidiano, que, apesar da distância, quer partilhar com a mulher amada. Assim, cremos que estas cartas, primordialmente (?) amorosas, são mais objectivas do que os relatórios militares e as notícias necrológicas, sabendo nós que uns e outros eram vigiados e censurados. Acresce a tudo isto, que, também nós, ainda que em teatros operacionais e época diferentes, cumprimos serviço militar obrigatório, na menina dos olhos dos colonialistas, isto é, em Angola. Não sabendo as surpresas que o tempo ainda nos pode reservar, António Lobo Antunes terá sido, até ao momento presente e através das suas cartas, aquele que, de 1961 a 1975, melhor verbalizou a vivência da Guerra Colonial.

6. “Porque é que vieram interromper-nos tão brutalmente?” A pergunta é formulada na carta de 1.6.71, escrita no Chiúme, Leste de Angola, quando o então alferes miliciano Lobo Antunes, cumpria o serviço Militar obrigatório. É dirigida a Maria José, sua mulher, ainda estudante e grávida de Maria José, a primogénita do casal. O autor estava no fim do mês quinto da sua estada em Angola e Chiúme era já o seu terceiro teatro de operações. Passara anteriormente por Gago Coutinho, onde, apesar de tudo, tinha uma certa vida de relação. No Ninda, conhecera Ernesto Melo Antunes a quem tece rasgados elogios e do qual será amigo para sempre. Chiúme é o buraco dos buracos, o lugar onde a DO chega com menos regularidade e há o célebre P., na messe, que não é, propriamente, um modelo de higiene. É no Chiúme, finalmente, que o autor faz referência explícita, reproduzindo de cor os dois versos finais, à Canção X de Camões. E finalmente, porque essa célebre composição de Camões já andava pressentida há muito, nestas cartas.

7. A pergunta em epígrafe, que admite várias interpretações, podia ter sido formulada por dezenas de milhar de jovens soldados que, num dado momento das suas vidas, viam as suas vidas interrompidas. As interrupções eram múltiplas: as luas-de-mel, os cursos, a aprendizagem de profissões, os namoros, muitos e muitos projectos futuros, no limite, a própria vida. Era tudo tão violento, nomeadamente, para quem já tinha alguma instrução escolar e política. O povoléu, ignaro e obediente, psiquicamente treinado para combater pela Pátria, batia-se, quase sempre, até aos limites da insensatez. Quantas narrativas de actos de grande bravura terão ficado por contar?

7.1. Passados apenas quinze dias e já o jovem alferes, médico de formação, notava que iria “pagar um preço muito caro pela possibilidade de voltar a viver” em Portugal (carta de 31.1.71.). As notações sobre a guerra são agora frequentes. Mais tarde há-de, já calejado e aparentemente mais conformado, poupar Maria José aos relatos horripilantes de mortos, amputados, feridos e desaparecidos. À exaltação inicial, vai opor-se um homem mais ponderado e quiçá mais conformado. “Escrevo-te de manhã, no gabinete da enfermaria, enquanto espero três evacuados” (carta de 10.2.71); porém, e também para terminar este subtópico, aqui ficam mais palavras de Lobo Antunes: “ Dos feridos gravíssimos de ontem – três sujeitos cheios de balas – não há notícias, mas espero que se salvem. Entretanto o morto – o guia – foi abandonado na mata às feras”( carta de 11.2.71).

7.2. A guerra não era apenas operações e mais operações militares e mortos e feridos e evacuados. Daí, a pertinência da observação que segue: “ É incrível a guerra que aqui fazemos, sozinhos e sem meios, contra um inimigo cada vez mais numeroso e bem preparado” (carta de 11.2.71). E onde muitos outros meteram o bedelho, passe o plebeísmo, como nota o futuro autor de As Naus: /…/ o nosso exército prolifera e vive no meio de uma confusão e de uma desordem indescritíveis” e mais à frente: “Chegam hoje os pilotos(17) nos seus pássaros gigantes, e não sei de onde é que estes franceses vêm e por que diabo colaboram nisto” (carta de 15.2.71).

7.3. E apesar da guerra ser uma actividade colectiva, onde acontecem os actos mais bárbaros e as solidariedades mais grandiosas, António sabe que ele e os restantes camaradas de armas, nomeadamente os mais esclarecidos, combatem fora da sua terra e em defesa de uma causa iníqua. Combatem pelos execráveis passadores de angolares por escudos, pelos novos-ricos que vão às festas em Luanda e que tudo fazem para que as suas crias masculinas não conheçam os tenebrosos teatros de operações. Não espanta, pois, esta constatação: “Cada um vive quase somente para si próprio e para as cartas que recebe, preocupado com a própria sobrevivência e mais nada” (carta de 17.3.71). Esta guerra, decididamente, era sentida como algo que era imposto e cujo absurdo as elites iam interiorizando. Não admira, assim, que, no pós-25 de Abril, a situação nunca mais se tivesse estabilizado. Todos os sobreviventes queriam voltar ao verdadeiro solo pátrio e ao seio das suas famílias. Cá, no rectângulo europeu, ficou célebre a palavra de ordem: NEM MAIS UM SOLDADO PARA AS COLÓNIAS!


7.4. Não eram, contudo, os tempos da incorporação e da mobilização, que marcavam o início das angústias familiares. A guerra começava a ser tema obrigatório para os rapazes e respectivas famílias, por altura dos quinze/dezasseis anos. Apesar de tudo, António Lobo Antunes terá iniciado o serviço militar já depois dos vinte e cinco anos, facto que lhe permitiu uma abordagem mais adulta e pontuada por uma imensa discrição. Porém, não deixam de ser dignas de registo as seguintes palavras de António:” O meu instinto conservador e comodista tem evoluído muito, e o ponteiro desloca-se, dia a dia, para a esquerda: não posso continuar a viver como o tenho feito até aqui” (carta de 15.5.71). É curioso notar que o futuro escritor, que se referia aos guerrilheiros por terroristas e que até mantinha uma relação amigável com o responsável da Pide, em Gago Coutinho, há-de deixar cair aquela denominação e esta amizade no esquecimento.

7.5. António Lobo Antunes é filho de uma futura grande família do reino. O pai é médico especialista e de nomeada. O irmão mais velho segue, segundo cremos, as peugadas do pai. António já é médico. E os restantes membros do clã hão-de desempenhar papéis noutras áreas, a saber: advocacia, música e diplomacia, nomeadamente. O nosso mancebo, compreensível mas tardiamente mancebo, vai transmitir, através das suas cartas – as cartas a Maria José -, a sua visão da guerra colonial e das actividades correlativas. A primeira grande nota de uma situação burlesca é dada ainda durante a viagem, na carta de 14.1.71, onde o futuro escritor descreve o ambiente das refeições, no paquete: “ Ao jantar e ao almoço, uma velha oxigenada, com duplo queixo e chinelos, toca piano com uma dificuldade míope, e ao lanche (chá e bolos), servido por uma nuvem de criados, a orquestra «Vera Cruz», qual deles com a melhor pinta de chulo lisboeta, magrinhos, brilhantinados, de olhar maroto, esfolam música de cabaré de putas.” Tendo em conta o puritanismo da sociedade portuguesa do início da década de setenta do século passado, imagine o putativo leitor a cara daquela panóplia de tias e avós, se lessem aquela prosa enérgica e realista de António.

7.6. A guerra é uma fonte de medos por excelência: os actores têm medo de morrer, de ficar estropiados, de ser preteridos no amor, de ser esquecidos por amigos, familiares e até pela mulher amada. Não espanta, assim, que o futuro autor de Cus de Judas , logo na primeira carta, a de 7.1.71, em tom imperativo, mas com patética sinceridade, escreva: “Lembra-te de mim”. De resto, esta fórmula vai ser repetida assim ou modificada em dezenas e dezenas de cartas: “lembra-te de mim, sempre/../”, “ /…/ tem paciência e lembra-te, de quando em quando, de mim”, “/…/ lembra-te de mim, tem saudades minhas e gosta um bocadinho do teu marido desterrado”, “Minha noiva linda, nunca te esqueças de mim”. António teme até – e o seu temor é tão humano!...-, que os outros o esqueçam. Daí esta tão comovente confissão nobreana: /…/ espero que continuem a pensar no António coitado/…/” Nobre, o espantoso poeta do SÓ, há-de ser referido explicitamente em duas das cartas e está presente, implicitamente, em muitas outras. Este António, tal como o poeta, é aquele que está longe da sua terra, das coisas e dos seres que lhe são queridos e que vive, também ele, só e corroído pela saudade, já muito longe da sua “torre de leite”. “92 dias separam-nos. Todas as manhãs desconto um. Vivo desta aritmética da saudade/…/”, escreve na carta de 28.6.71.


8. “Porque é que vieram interromper-nos tão brutalmente?” António casara em Agosto de 1970 e embarcou para Angola em 6 de Janeiro de 1971. O casal, apesar dos meses entretanto decorridos e de Maria José já se encontrar grávida, vivia ainda uma prolongada lua-de-mel. Era um dos efeitos da guerra. Vivia-se o dia presente como se do último se tratasse. A guerra conferia a tudo, e ao amor também, um carácter de urgência. Deixo aqui um verso de Ramos Rosa: “Não posso adiar o amor para outro século”.

8.1. As cartas escritas por António são apaixonadíssimas. Aqui se transcrevem algumas das fórmulas iniciais, que, de certo modo, atestam essa mesma paixão: “Meu querido amor”, com noventa e quatro ocorrências; “Minha jóia querida”, repetida em quarenta e cinco missivas”; “Minha querida jóia”, surge quarenta e uma vez; para “Meu amor querido”, contamos vinte e seis; e “Meu amor” é utilizada em quinze cartas. Porém, o trabalho de joalheiro vai mais longe, utilizando ainda as fórmulas seguintes: “Minha jóia”, “Minha jóia adorada”, “Minha querida jóia linda”, “Minha amada jóia”, “Minha jóia preciosa e querida”, “Minha jóia zangada”, etc.
Ainda no âmbito destes começos, note-se o emprego de “Minha linda senhora” e também “Minha alma amada”, que, ainda que este amor se alimente de carne, remete para códigos amorosos antigos que o autor conhece bem e que não utilizará por acaso. Nomeadamente a fórmula “Minha alma amada”, que configura uma identidade espiritual plena entre os dois amantes. Maria José é o primeiro leitor de António e este confere grande importância à sua opinião. Devido à separação, Melo Antunes também há-de ler excertos, em primeira-mão, e dar alguns conselhos ao jovem escritor.
Como todos os casais, mesmo à distância, os “amuos” também acontecem, ainda que para António sejam sol de pouca dura. Diz o que tem a dizer, directa e incisivamente, e retoma a relação com a ternura de sempre. É nestes momentos que inicia as cartas com expressões diferentes das habituais: “Maria José”, “Sr.ª D. Maria José” e “Minha Senhora”´. O ciúme também não está completamente ausente, quando, numa das cartas, diz que se vive bem, em sua casa, na sua ausência. Outros exemplos poderiam ser dados.

8.2. Os finais das cerca de trezentas cartas são memoráveis e muitos deles constituem verdadeiros hinos ao amor. Outros, por sua vez, tocam-nos pelo insólito e pelo imenso humor de António. É justo que se diga, neste preciso momento, que os finais das cartas são profundamente caóticos. Há sempre uns milhões de beijos para acrescentar, um “lembra-te de mim”, mais beijos, um “GTS”, etc., que nos dão conta da profunda solidão em que vive este homem e da falta física que lhe faz a mulher amada.

8.3. Nós sabemos, de saber de experiência feito, quanto doíam as carências afectivas. Sabemos, com saber de experiência feito, com se iludia essa dor. Sabemos, com saber de experiência feito, a quanta sordidez nos obrigou a guerra. Houve outros Antónios, mas deve ser aqui transcrito este testemunho: “ As minhas saudades tuas são imensas. É tão triste esta longuíssima separação” (carta de 10.5.71) e diz-lhe imediatamente: “Com nenhuma mulher dormirei senão contigo, a mãe do Toino – ou da Zézinha. Milhões de beijos /…/” (carta de 10.5.71). E no entanto, este homem morre de desejo: “Coloco o meu pénis na forquilha do teu corpo” (carta de 20.1.71) e remata esta carta com ” Milhões e milhões de saudades apaixonadas, de beijos, de festas, de carícias e de abraços/…/”.
Dias depois, com os sentidos já na ordem, se é que pode falar assim, escreve: “ o teu Van Gogh (tinha tido um problema numa orelha) adora-te, minha gazelinha adorada, meu diamante querido, minha pérola e minha estrela” (carta de 21.1.71); todavia, o seu amor nunca deixa de ser superlativo: “Gosto tanto tanto tanto de ti” (carta de 27.1.71). Alguns dias depois, o desejo voltava: “Eu queria tanto voltar a ver-te! Deves estar, com certeza, cada vez mais bonita. E gorda. E barriguda. Apetece-me tanto deitar-me em cima de ti e penetrar-te” (carta de 1.2.71). Passados alguns meses, já próximo do primeiro reencontro, escreve: “Hoje tenho andado com uma terrível vontade sexual. Prepara-te para coitos homéricos” (carta de 13.7.71) e num dos aerogramas seguintes reitera:” Gosto tudo de ti, meu amor querido. E prepara-te para tetraquotidianos combates singulares” (carta de 20.7.71).
Mais palavras para quê?


9. A escrita é a obsessão das obsessões de António Lobo Antunes, que também é, como havemos de ver mais tarde, um grande devorador de livros. Não dissemos grande leitor, propositadamente, ainda que do seu currículo conste uma plêiade de autores de narrativas, que começa com Homero, no séc.VIII a.C. e chega aos seus contemporâneos, estrangeiros e nacionais. Há neste homem um dado relevante: é detentor de uma memória prodigiosa, uma memória onde tudo se inscreve e nada se apaga. Tem, na verdade, uma memória de elefante.

9.1. Antes de avançarmos neste ponto que denominamos a obsessão das obsessões, queremos aqui realçar o facto de Lobo Antunes ter deixado manuscritos em Portugal, os quais manda destruir a Maria José, na carta de 27.3.71. E diz mesmo que ficaria muito zangado, se, porventura, encontrasse as suas “historietas miseráveis”, quando viesse a Portugal. Mas quem tem acompanhado a vida do autor, sabe que escreveu desde sempre. Pelo menos, é essa a ideia que deixa passar em todas as entrevistas, quando perguntado sobre o assunto. E as cartas reiteram definitivamente essa ideia, e, outra ainda, a da escrita como trabalho oficinal. Atente-se nas próprias palavras do autor acerca do Voo: “ O problema tem sido reduzir a minha prosa a uma simplicidade bem legível. Cortar o pescoço à eloquência”, Chiúme, 7.6.71. Eloquente!

9.2. A escrita é o oxigénio de Lobo Antunes. Parece predestinado para escrever livros e daí que, no interior da própria família, o olhem diferentemente. As palavras do próprio autor: “No fundo agrada-me que assim seja, sempre gostei muito do amor, sobretudo do que eles têm por mim, que, não sei se já reparaste, é diferente do que sentem pelos meus irmãos, porque eles têm a sensação de que possuo qualquer coisa de irresponsável e imprevisível e de que farei um dia algo de heróico e de louco e de sublime, que eles não sabem bem o que será mas que os mantém em suspense”, carta de 12.4.71. E curiosamente, esta é uma das poucas missivas em que não fala da “história” ou histórias, tanto faz.

9.3. A inscrição da sua escrita, nesta grande narrativa epistolar, é iniciada com uma intenção: ”Qualquer dia recomeço a escrever (carta de 29.1.71)” e dois dias depois avisa:”/…/começo, de novo, a pensar no livro/…/”. Na carta de 7.2.71, escreve: “ Começo a assentar e a serenar. Comecei, talvez por isso, e a escrever um novo Dilúvio /…/ “Na missiva de 11.2.7, assegura: “ A história cá se vai fazendo com o pouco tempo que para ela tenho, com facilidade e sem muletas.”; para asseverar, cinco dias depois: “ A minha história lá avança entretanto, e parece-me genial………”. A 24 de Fevereiro, afirma: “/…/ Tenho avançado o Dilúvio contra ventos e marés, e espero tê-lo pronto e genial antes das férias.” Apesar do tom optimista em que se expressa; nota-se já, todavia, que algo não vai inteiramente bem com este livro, que trazia iniciado de Lisboa e que há-de abandonar.

9.4. Na carta de 13.3.71, António, eufórico, revela a Maria José: “Ontem passou-me uma coisa pela cabeça e comecei a escrever uma história completamente nova, com uma facilidade incrível. É uma coisa que me tem entusiasmado para lá de todas as palavras, e que excede, mesmo, tudo quanto me julgava capaz de fazer”. E não se cansa de tecer elogios ao seu novo projecto, que conta ainda apenas com dez páginas, mas que será um romance “assombroso” e o mais “revolucionário” de todos os que já lera. E assevera que não está “a ser pedante, nem aldrabão, nem exagerado”. É o dia triunfal de Lobo Antunes que, de resto, já era um velho conhecido de Fernando António e conhecia a génese dos heterónimos.

9.5. É verdadeiramente impressionante a quantidade de autores que, aos vinte e oito anos de idade, António já tinha lido e sobre os quais se permite emitir juízos de valor. Conhece os autores sul-americanos fundamentais, que se expressam em português e castelhano. E, apesar da “sua tenra idade” e da ausência de obra publicada, olha-os de cima para baixo (é assim que quero dizer). Gabriel Garcia Marquez, e, sobretudo, Cem Anos de Solidão, Carlos Fuentes e Cortázar, são dos raros autores, do subcontinente, que se salvam da mira sempre muito crítica do futuro autor de A Morte de Carlos Gardel.

9.6. Os franceses, que conhece abundantemente, passam sem grandes críticas. La Chute de Camus é uma coisa bem escrita. A Peste, lida aos dezasseis anos, era uma coisa extraordinária; mas aos vinte e oito, já era maçadora. De resto, parece não apreciar muito a literatura solar de Camus. Nem uma só referência a O Estrangeiro. André Gide, o esteta, é referido várias vezes, mas sem adjectivos. Copia-lhe o método do caderninho. Acusa Balzac “pela cristalização do romance”. Conhece o antiquíssimo Cyrano de Bergerac. Mostra grande interesse pela Shafo de Alphonse Daudet e lê Samuel Beckett. Quem exerce, no entanto, um grande fascínio sobre o jovem escritor é Céline, que chega a considerar o maior, ainda que determinados juízos de valor reflictam muito o estado de alma do momento em que são formulados.
Ainda uma pequena nota referente à língua francesa. António revela um grande conhecimento da língua – e não será desapropriado dizê-lo – um certo gozo em utilizar expressões da língua de Victor Hugo, ora para valorizar a beleza de Maria José, ora para dizer quanto detestava aquela situação que lhe roubava dois anos da sua vida. Aqui fica o registo de algumas expressões francesas:”tristesse”, “três hasardeux”, “à la longue”, “soyons heureux”, “à en mourir”, “environement”, “refaire une beauté”, “je m’en fiche”, je deteste ça”, etc.

9.7. Quanto aos espanhóis da península, Lobo Antunes não dá conta dos seus conhecimentos. Trata familiarmente Don Miguel de Unamuno, atribui um verso de Lorca a Rosalía de Castro e faz uma referência elogiosa a Jorge Semprún, que lhe foi revelado por Melo Antunes.


9.8. Ainda no que concerne a autores estrangeiros da sua predilecção, para além dos sul-americanos já anteriormente referidos, avultam Joyce e Faulkner. Do primeiro diz: “ /…/ o melhor do mundo é James Joyce” (carta de 7.7.71) e quer o seu retrato, na “nossa casinha”, em lugar de destaque. Em relação a Faulkner, diz que gostaria de ter escrito todos os seus livros. E na mesma carta (Carta de 23.2.72), numa condusão propositadamente torrencial e incoerente e por metonímia, refere Hemingway e Stendhal e Flaubert e e Thomas Mann, etc. e depois lembra-se de Tolstoi, “que é o maior de todos”. Outros autores são citados: Franz Kafka, Gunther Grass, Truman Capote, etc. E talvez seja justo dizer, neste ponto, que, apesar das nossas omissões, a carta de 23.2.72, escrita na Marimba, fixa a árvore genealógica de António Lobo Antunes.

9.9. Era espectável que António Lobo Antunes nos desse mais notícias de autores portugueses. Afirma, curiosamente, que os três maiores escritores portugueses são Camões, Pessoa e Bocage. Deste último lamenta o facto de não o conhecer tão bem como devia. E de andar associado ao anedotário.
Lê ensaios de Jorge de Sena, contos de Almada, romances de Namora e descasca em O’Neill. Acerca da obra deste último, As andorinhas não têm restaurante, diz tratar-se de uma série de prosas sem categoria nenhuma, /…/ Qualquer coisa de fotonovela e nem um cheiro daquela atmosfera russa indefinível/…/, que eu tanto gosto de respirar” (carta de 27.2.71).
Acha que Soeiro Pereira Gomes seguiu demasiado Os Capitães da Areia de Jorge Amado, na Engrenagem; contudo, tece rasgados elogios ao neo-realismo, por ter dado voz ao país real. De Redol lê A Barca dos Sete Lemos e não faz quaisquer comentários.
Não é natural, em nossa humílima opinião, que o futuro autor do Esplendor de Portugal, se tenha esquecido dos grandes novelistas portugueses de oitocentos: Garrett, Camilo e Eça. E ainda de nomes do séc. XX como José Cardoso Pires e Agustina Bessa Luís.
É estranho, não é?


10. António Lobo Antunes revela uma grande sensibilidade pelas questões de natureza antropológica. Ao longo das cartas são abundantes os seus testemunhos, quer no que toca ao modo de organização das populações, à volta dos chefes tribais; quer no que concerne às suas crenças e práticas ancestrais. Não sendo um documento insubstituível ou sequer de referência, as cartas revelam aquele que numa delas se despede como “marido, pai e escritor”, como um homem de grande sensibilidade e de cultura.

10.1. Os merengues, que também servem para avisar os guerrilheiros ( para Lobo Antunes ainda são terroristas) da saída das tropas, “são fabulosos de ritmo e de beleza selvagem. Ao centro, um grupo de homens percute os tambores, e a malta dança de roda, velhos e novos, mulheres com filhos às costas, etc., mexendo-se com uma espantosa facilidade e um ritmo extraordinário, cantando ao mesmo tempo uma melopeia estranhíssima” (carta de 15.2.71).
Ainda que desde sempre “o tricotar subterrâneo” da escrita o tenha absorvido, António é por formação um homem de ciência, mas nem por isso deixa de assistir a certas cerimónias autóctones: “Hoje, domingo, passei a manhã, numa cerimónia curiosa, a assistir è esconjuração de uma doente, para que a doença saísse de dentro dela” e mais à frente: “três homens tocavam tambor e a malta dançava e cantava à volta/…/” (carta de 7.3.71).
Porém, nem todas as práticas eram benfazejas: “Ontem, em consequência de uma feitiçaria, amarraram uma velha a um quimbo e queimaram-na viva no Ninda, rito ainda frequente nestas paragens”(carta de 24.3.71).

10.2. A sexualidade é um daqueles temas que nunca lhe poderia passar ao lado. E a sua condição de médico, permitia-lhe um conhecimento provavelmente vedado a outros: “/…/ os casos impotência masculina são frequentíssimos, e todos os dias oiço tristes queixas de machos desiludidos, exibindo pénis formidáveis e inúteis” (carta de 12.3.71).
Constata que “ Não existe homossexualidade, a não ser numas vagas ligações helénicas entre velhos e miúdos, que se desfazem com a puberdade destes. O beijo é ignorado, as carícias também, e a fornicação faz-se de lado, numa imobilidade de preguiça, durante horas, sem se tocarem, numa indiferença absoluta” (carta de 2.4.71).
A desfloração de uma garota nativa por um coxo grotesco, é assim descrita:” Um coxo/…/ foi-se a uma garota de uns nove anos e, como eles dizem, «tirou-lhe o cabaço»: em vez de oito anos de prisão maior celular., a malta teve uma alegria enorme. Seguem-se oito dias de batuque”.


11. Luanda e os luandenses brancos não mereceram a simpatia do futuro grande escritor. A capital de Angola perpassa pelos olhos do artista como “uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano/…/” e os seus habitantes brancos “/…/têm o mesmo indefinível aspecto de vendedores de automóveis/…/” dos da Metrópole. As mulheres são “/…/ tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas.”Nesta carta, a de 16.1.71, fala-nos ainda do Grafanil, que era o grande entreposto humano e mercantil que alimentava toda a guerra, naquele imenso território. Estas eram apenas as primeiras impressões.
Na carta de 21.3.71, Luanda volta a estar sob a mira do artista. Sente-se irritado com a vida da capital, onde nada falta e a fazer fé nas revistas, que publicam as fotografias, há “bailes” e “festas” e “eleições de misses”, enquanto lá longe, nos perímetros dos aquartelamentos, os militares sofrem por todos aqueles que se divertem e os olham com desdém. Mas apesar de não querer pormenorizar por razões óbvias, não deixa de afirmar: “/…/ os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável.” Em suma, são gente “execrável”, que não merece as potencialidades de Angola e aponta-os como ”os descendentes dos degredados”.

12. As notações meteorológicas de Lobo Antunes, para além de fidedignas, dão-nos também “uma visão de artista”. Na curta estada em Luanda e na companhia de outros militares, visita a ilha, mas percebe-se que não gosta do que vê e descobre que “O céu nunca é azul mas maciço, grosso, espesso, triste (carta de 17.1.71). Luanda é apenas uma escala a caminho do Leste. Já em Gago Coutinho, vejamos como o autor descreve as grandes chuvadas: “/…/ têm caído aqui chuvadas gigantescas; em cinco minutos fica tudo alagado de charcos e poças imensas, /…/ as trovoadas, fantásticas de intensidade, desabam em cima de nós numa cadência de Apocalipse” (carta de 31.1.71).
A estação das chuvas vai cessar. Aproxima-se o tempo do cacimbo. As palavras do autor: “O calor tem sido, nestes últimos dias, diabólico, e o céu permanece imperturbável. É o início do cacimbo, mas as noites frias ainda não começaram” (carta de 12.3.71). Está-se, com efeito, num período de transição. Precava-se o leitor, que a coisa vem em crescendo: “ontem à noite desabou aqui uma tempestade imensa, a maior a que até agora assisti, com relâmpagos a caírem por todos os lados, numa sucessão ininterrupta, e os trovões a rebolarem num ruído enorme /…/ “ Mas ainda não era tudo. As trovoadas em Angola, às quais também assistimos, eram fenómenos excepcionais. De novo as palavras do autor das cartas: “Tudo tremia e oscilava. Os raios eram tantos que parecia dia /…/, as casas saíam do escuro numa claridade ofuscante, e o som da água era verdadeiramente ensurdecedor”(carta de 8.8.71). Poderíamos transcrever outros excertos, igualmente realistas e belos, porque as notações de ordem climatérica são abundantes, nestas que também serão, com toda a certeza, comoventes cartas de amor. Cada leitor que tenha passado por Angola, pela imensidão do espaço e da noite, na época das chuvas, sabe que a forma de dizer é a de um artista da palavra, mas a matéria substantiva já está ali toda.


13. Há um só aspecto nestas cartas – e por que não dizer uma linha de força -, que nos chocou do princípio ao fim: a relação de António com o dinheiro e as restantes coisas materiais. Sabemos que era casado e que contraíra determinadas responsabilidades, mas também sabemos que a sua família vivia muito acima da média das famílias daqueles soldados - e até muitos graduados - , que nada tinham e que por isso mesmo viam na tropa uma forma de fugir a quotidianos ainda mais pobres. E que o seu vencimento de alferes e os dinheiros recebidos do exercício da sua profissão junto das comunidades locais, formavam uma massa monetária verdadeiramente invejável.
António conta os tostões um a um e sabe a totalidade do dinheiro que já enviou, que irá receber, aquele com que fica e ainda amealha, para depois comprar um carrinho e outras coisas. Compra arte indígena, feita por encomenda, mas confessa depois que tinha gasto uma ridicularia de angolares.
Sempre preocupado com a economia doméstica, lembra várias vezes Maria José da necessidade do envio da certidão de nascimento da filha e dá-lhe instruções relativamente a um laboratório de produtos para bebés.
Ainda neste capítulo, e porque também revela uma personalidade, destaque-se o envio de uísques e outras bebidas por diversos portadores. António não bebe, mas sabe que o material é bom e que a compra é um bom negócio.


Antunes, António Lobo, D’este viver aqui neste papel descripto, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1ª Ed. Out/2005.


Manuel Barata

quinta-feira, novembro 02, 2006

SANTA IRIA - 9

A vila de Santa Iria
tem tanta tanta beleza...
È uma altiva princesa,
que o meigo Tejo acaricia!

SANTA IRIA - 7 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 6 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 5 (VIA RARA)

SANTA IRIA - 4 (VIA RARA)


O parque de Via Rara - um dos múltiplos lugares de Santa Iria de Azóia -, onde estão a ser construídas as piscinas, é um espaço de lazer de muita beleza e que é bem aproveitado pela população.
Tem sido timbre do executivo da Junta de Freguesia zelar pelos espaços verdes e promover a sua criação. Se outras obras não tivessem sido feitas, esta atitude ambiental da autarquia já seria obra de tomo.

quarta-feira, novembro 01, 2006

BENFICA MAGNUS EST

( Escrito antes do jogo Benfica-FCP,
realizado na Luz, na época 2005-2006.
Foi enviado a alguns dos meus amigos.
Robert marcou o golo da vitória).


Dá talento ao glorioso,
Musa, para ganhar ao Porto!
Faz Portugal venturoso,
Dá-lhe alegria e conforto!

Faz renascer a ‘sperança
De mais triunfos futuros,
Que os do Norte na lembrança
Levem só castigos duros.

Um a zero já é bom
E castigo suf’ciente
Para aquela pobre gente
Não se crer uma naçom!