sábado, outubro 14, 2006

MARTIN RT HANNAH

Continuo a ler, interessadíssimo, o romance Martin et Hannah de Catherine Clément. Martin é o filósofo Martin Heidegger, indubitavelmente um dos espíritos mais brilhantes do séc. XX. Hannah Arendt é uma intelectual judia, antiga aluna e amante do pensador alemão. A outra personagem do triângulo amoroso é a legítima de Heidegger, Elfride, que, apesar de quase tudo saber da duplicidade da vida amorosa do marido, desde 1950, aceita disputar até ao fim não o papel de melhor amante, mas o de melhor adjuvante na construção de uma obra filosófica.
Catherine Clément, inclemente com Heidegger e sobretudo com Elfride, traça desta o retrato de uma mulher de formação universitária que adere ao nazismo convictamente. Luteriana, Elfride continuava luteriana de alma. Obstinada, de olhos abertos para a degradação da Alemanha, para a cloaca de Berlim onde acabavam os detritos da República alemã. Era preciso pôr fim a isto, reduzir a podridão a cinzas e regressar aos verdadeiros valores de perfeição que Martin incarnava: o amor pelos cimos, a neve límpida, a natureza, a saúde, o ar puro e o alto pensamento. Até aqui, dir-se-ia que a legítima de Heidegger pugnava por valores perfeitamente razoáveis. Quem, ainda hoje, não aceitaria os valores acima enumerados? O problema era outro. Elfride não aceitava o fim do império austro-húngaro. A República e a democracia eram as fontes de todas as enfermidades. Principalmente, porque representavam o dictat dos vencedores e a humilhação da Alemanha.
Vejamos como Catherine Clément não deixa margens para qualquer ambiguidade: Do fundo do seu coração, Elfride esperava a borrasca que varresse os miasmas da democracia. Limpa dos travestis berlinenses, das prostitutas, dos comunistas, dos banqueiros, dos artistas. A Alemanha purificada de judeus. Para varrer com a decadência, era preciso um vento muito forte e selvagem. Esse vento forte e selvagem era o “pequeno austríaco”. Ganharia eleições democráticas em 1933 e instauraria o III Reich. Até aqui Elfride estivera sempre à frente de Martin. Agora era o jovem professor que adere aos ideais hitlerianos e aceita, ainda que só durante dez meses, uma reitoria.
Catherine Clément, professora de filosofia com vasta obra publicada, parece, muitas vezes, condescendente com Heidegger. Parece querer transferir o odioso da adesão do filósofo ao nazismo para a pessoa de Elfride. Parece. Porque o mesmo Martin, pensador católico e entusiasta de Hitler, afinal de contas, até tinha, desde 1924, uma amante judia. Eclético era, seguramente. No final do livro, resolverei a magna questão do parece (1).
1. Este texto sobre o livro de Catherine Clément data do ano 2000.

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