domingo, dezembro 31, 2006

quinta-feira, dezembro 28, 2006

PATRIA -III

Os apátridas dos negócios prefiro
Aos lacaios dos apátridas,
Quando os segundos de governantes travestidos,
Impõem o tal respeitinho.

E de ti se riem, alarves e felizes, ó Pátria!

A LUXÚRIA

“Segui, ó gente mortal, o exemplo das deusas
e não negueis o prazer, que vos é natural, aos homens que vos desejam.
Mesmo que logo depois vos enganem, que perdeis? Tudo fica no seu lugar;
ainda que mil vos possuam, nem por isso alguma coisa se perde”.
Ovídio, Arte de amar, Livros Cotovia

“ Conhecera Teresa mais ou menos há três semanas numa cidadezinha da Boémia. Só tinham passado pouco mais de uma hora juntos. Ela acompanhara-o à estação e tinha esperado até ele entrar no comboio. Dez dias mais tarde, veio vê-lo a Praga. Fizeram amor logo no próprio dia da sua chegada”.
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

“oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo… este medo, estes contínuos terrores que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. –Oh que amor, que felicidade…” (Madalena)
Garrett, Frei Luiz de Sousa


Por razões da minha vida pessoal não me foi possível consultar as obras necessárias para, acerca da luxúria, vos fornecer todo um manancial de citações, que ilustrariam melhor este tema do que as minhas palavras. Luxúria significa, como todos bem sabeis, sensualidade e libertinagem, nomeadamente. E é um dos sete pecados capitais.

Conheceis, certamente, a expressão “até os bichinhos gostam”. Tem mais uso junto do elemento masculino, mas concordareis que se trata de uma bela observação, que a vasta Natureza nos proporciona. E porque amar é tão natural como respirar, podem vir todas as doutrinas, podem chover catecismos, todos os conselhos, todas as bulas, que a força do desejo será sempre superior a todas as imposições de ordem moral e outras.

Pois “ se até os bichinhos gostam”… Façam todas as vontades ao corpo e ao espírito, no domínio da sexualidade. Sigam os sábios conselhos do imortal Ovídio. Aprendam e pratiquem a arte de amar. Na verdade, só amando lograrão atingir a felicidade. Mandem às malvas a temperança que os catecismos prescrevem! Mandem às urtigas todas as restantes virtudes, teológicas e cardinais, porque Deus perdoa sempre, e, nos tempos que correm, os virtuosos estão fora de moda.

Vou concluir com a sensação de que este pecado merecia um tratamento mais eficaz e desenvolvido. Deixo-vos, no entanto, um conselho: sejam pecadores metódicos; não se envergonhem de ser felizes; tornem as vossas vidas coloridas e interessantes.

terça-feira, dezembro 26, 2006

QUANDO (POEMA DE NATAL)

Prá Filipa, com amor.

Quando o teu choro inundou
o silêncio doloroso daquela noite longa

quando me apoderei da certeza
da perfeição desejada

quando...

quando meu amor
soube tudo
do pouco muito que queria saber
corri pelas ruas da cidade
como um cavalo sem freio
para repartir a alegria incontida
de ter dado vida à vida

e após respirar o ar
de Lisboa ainda adormecida
recostei-me no banco do automóvel
e deixei que os meus olhos vertessem
um lágrima comovida

Jan./81

IGREJA HIPÓCRITA

A Igreja Católica é, indiscutivelmente, a instituição mais antiga e estável de Portugal. E também aquela que mais influencia toda a vida da nossa sociedade. São-lhes reconhecidos e outorgados incontáveis privilégios.

Durante quase nove séculos, a Igreja Católica tem interferido na vida de Portugal, mais ou menos a seu bel-prazer, tomando sempre partido ao lado dos detentores do mando. Os períodos de menos influência confirmam apenas a regra. Daí que esta vetusta senhora se permita interferir na vida do país de forma intolerável. É agora o caso, em vésperas de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A grande dama, que conhece como ninguém as engenharias de manipulação das almas, propaga aos sete ventos o seu apego à vida humana. E no entanto, não mexe uma palha para ajudar a resolver a pandemia que dizima as populações africanas e que dá pelo nome de HIV. Bastaria que, tolerante, aconselhasse o uso do preservativo.

A Igreja Católica, permanentemente alinhada ao lado dos segmentos mais conservadores da sociedade portuguesa – e quiçá minoritários -, ao imiscuir-se tão profunda e apaixonadamente na questão do aborto, desrespeita os defensores do sim e coloca-se em posição de ser desrespeitada. Está a badalar de mais.

Só quem respeita merece respeito!

domingo, dezembro 24, 2006

EM TEMPO DE NATAL

Sófocles escreveu: “grande maravilha é a Terra, mas maior maravilha é o Homem”. Se não for esta a frase pouco importa, porque importante, mil vezes mais importante que uma forma, neste caso particular, é o conteúdo da mensagem que se quer transmitir. Cito o autor de Antígona, porque é chegado o momento de mergulharmos de novo nas raízes da nossa decrépita e bem-amada Civilização Ocidental para, penso eu, renascermos imbuídos de um novo humanismo, que ponha um fim rápido a estas sociedades sem princípios, onde pontificam valores tão nobres como o lucro e o consumismo.

TORGA, OS DIÁRIOS E EU

Rabiscar notas, mesmo sob a forma de diário, não é tarefa fácil. Ainda que a escrita me esteja na massa do sangue, alinhar notas que suscitem interesse, numa prosa minimamente escorreita e ágil, repito, não é tarefa fácil. E há dias em que o vazio é total e o branco assusta. E no entanto, escrevo pelo prazer que a escrita me proporciona e não com a intenção de ganhar a vidinha. De resto, apenas um escrito me rendeu meia dúzia de patacos.

Concordo que um diário seja um espelho - um espelho muito peculiar - que há-de reflectir do autor a imagem desejada. Torga faz passar meia dúzia de ideias fortes: um homem na cidade, desenraizado, que procura no espaço primordial de S. Martinho de Anta a força para perseverar nos muitos desafios da vida; um homem dotado de uma grande firmeza de ânimo, à boa maneira dos estóicos, visível já nos textos escritos na prisão do Aljube, nos anos trinta; um homem solidário com os seus semelhantes e preocupado com a condição humana; um homem ousado, quando critica o Quixote de Cervantes; etc. Mas há outro Torga que se vai insinuando e que nada tem a ver com o caçador de S. Martinho de Anta: o artista que viaja e lê os autores mais significativos da literatura europeia (Ibérico por convicção, a sua Europa estende-se até aos Urais);o homem culto que é capaz de se pronunciar acerca de Rembrant e Beethoven. Ao fim e ao cabo, apesar de reivindicar persistentemente as suas raízes camponesas, lá bem no fundo, Torga não despreza um certo cosmopolitismo. E aqui encontramos, seguramente, uma das razões da sua candidatura ao Nobel.

Seja como for, não há que levar a mal que o autor de Os Bichos tenha as suas estratégias. É um direito que lhe assiste. Há que respeitá-lo enquanto homem e criador.

Retomando o fio à meada e para concluir, compartilho da ideia de que um diário, construído texto a texto, como quem constrói uma casa, é um acto criador como outro qualquer. Com a vantagem de o seu autor se despir perante os leitores, enquanto pessoa empírica, e não poder gozar de um estatuto idêntico ao do narrador que, no entender de Roland Barthes, “é um ser de papel”.

EM TEMPO DE NATAL (ORAÇÃO)

Dai saúde, Senhor, aos nossos bem-amados Chefes, para que nos possam guiar pelos Teus caminhos, nesta dura peregrinação que é a vida.

Protegei, Senhor, os nossos mui queridos Chefes, todos sem excepção, para que, mediadores entre a Luz e as trevas, nos possam iluminar os passos, nesta miseranda passagem pelo mundo.
Daí sabedoria, Senhor, aos nossos amantíssimos Chefes, também eles como nós pecadores, mas por Vós eleitos, para não nos deixarem pôr o pé em ramo verde, nesta lastimável passagem pelo reino das sombras.

Amai-os, Senhor, infinitamente, para que eles nos possam amar nesta difícil caminhada para a Glória, ou, no mínimo, para que não nos possam tramar.

Dai-lhes saúde, Senhor!
Protegei-os, Senhor!
Dai-lhes sabedoria, Senhor!
Amai-os infinitamente, Senhor!

Amai-os, Senhor, como eles nos amam.

EM TEMPO DE NATAL

Os santos que são santos também pecaram, diz o povo. E no entanto, quando se reencontraram com Deus (que cristão!), todos se sentaram à sua direita. Pecaram, com certeza, por pensamentos, palavras e obras e ter-se-ão arrependido contritamente, para merecerem a indulgência do Criador. E os homens tê-los-ão perdoado?

Um homem pode ter vivido a vida mais virtuosa das vidas, mas no dia em que cometer o mais insignificante deslize, os seus semelhantes constituir-se-ão em pelotão de fuzilamento. Em nome de Deus - mesmo sem procuração -, da justiça e da liberdade. O ensinamento profundo da parábola da adúltera, nunca entrará nas suas cabeças empedernidas.

PÁTRIA - II

Portugal é hoje um país de repteis. Não admira, assim, que a traição espreite a cada esquina. Os portugueses sempre foram mesquinhos e interesseiros. E nada dói tanto como a ausência de grandeza. Portugal começou a agonizar, com efeito, ainda na primeira metade do séc. XVI. Caminha para a dissolução final, inelutavelmente. E sobretudo, porque nunca mais soube encontrar alternativas credíveis e atempadas. Hoje, agarra-se e chupa a teta da mãe Europa com quantas forças tem. O pior virá, quando a teta, sugada até ao tutano, deixar de ser o almejado D. Sebastião.

Curiosamente, a religião nos fez grandes e pequenos. Com o mito de cruzada dominámos metade do mundo. A Inquisição castrou-nos para sempre.


sexta-feira, dezembro 22, 2006

AVAREZA

Se perguntarem a um avarento, por que nutre tanta apetência pela posse de bens materiais, antes de mais, negará a sua qualidade de avarento. Dirá que, ao contrário do que os outros pensam, é apenas uma pessoa previdente e contará ao seu interlocutor a conhecida fábula da cigarra e da formiga. E dirá que se sente bem na pele desses minúsculos e negros bichinhos que, de uma forma mecânica, executam metodicamente o vaivém entre o local onde se encontra a semente - ou seja lá o que for -. e o buraco-armazém.

Como é bom de ver, o avarento não é um contemplativo. Será mesmo incapaz de retirar prazer, de ordem estética ou outra, dos seus bens materiais. Não viu, decerto , “Casimiro e Carolina no teatro do Bairro Alto ou o “Círculo de Giz Caucasiano” no Teatro Aberto. Não frequenta salas de cinema, não aprecia pintura e escultura, não viaja. Em relação às coisas que enriquecem verdadeiramente um ser humano, o avarento é um homem não. E poderíamos ficar por aqui no que à avareza concerne, mas o retrato ficaria incompleto.

O avarento não cultiva a vida de relação. Vive ensimesmado. Prefere a conversa com os seus botões. Inventaria e actualiza permanentemente o valor dos seus bens. Tudo o que esteja para além do estritamente necessário é supérfluo. Quando compra botas novas aos filhos, recomenda-lhe que dêem passos largos. Gosta de ser convidado, mas quando toca a sua vez de pagar a conta, desafia os parceiros para jogar à moedinha. Vai aos arames quando lhe falam em férias. Cria galinhas na varanda de sua casa para poder vender ovos. É o único que não ri, quando lhe contam a nova versão da fábula da cigarra e da formiga, que aqui deixo reproduzida:

No pico do Inverno, a cigarra bate à porta da formiga e esta pergunta:
- Quem é?
- Sou eu, a cigarra.
- Que queres?
- Quero apenas falar contigo, formiga.
- Já conheço os teus truques desde que o mundo é mundo. Estou farta da tua música.
- Não sejas parva , formiga. Abre lá a porta!...
A formiga abriu o postigo e deparou com a cigarra toda anafada e de casaco de peles. È então que a cigarra diz:
- Vou para Paris. Vim despedir-me de ti.
- Estupefacta, a formiga replicou:
- Olha, cigarra, já que vais para Paris, se vires o La Fontaine, manda-o foder com a história da fábula.

Terão notado, com certeza, que me centrei apenas num tipo de avarento, ou seja, naquele que vive obcecado pelo dinheiro e pelos bens materiais. O discurso poderia, no entanto, ser dirigido noutras direcções. Poupemos, por hoje, os ambiciosos de todos os matizes e os mesquinhos.

A avareza, caríssimos alunos e colegas, é um pecado capital. Pratiquemos todos, todos sem excepção, a prodigalidade, tornando-nos dignos do senhor D. João V, o tal que, com o oiro do Brasil, mandou construir o convento de Mafra e passou à História com o cognome de “o Magnânimo”.

CANTIGA DO COITADO

Em Vigo
Perguntei às ondas:
- Sabeis Novas da minha amiga?
E as ondas me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Pontevedra
Perguntei aos barcos:
- Sabeis novas da minha amiga?
E os barcos me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Santiago
A Santiago perguntei:
-Sabeis novas da minha amiga?
E Santiago me respondeu:
- Um novo amigo tem!

Ferido no coração,
A Lisboa voltei
Mil vezes ouvindo:
- Um novo amigo tem!

- Um novo amigo tem!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

PÁTRIA - I

Quando eu era menino e moço,
escrevia-se com "pê" maiúsculo
e dizia-se com muito respeitinho.

Inda ia da ocidental Europa até Timor.

Por ela se delapidava a fazenda,
por ela se ignorava o sofrimento,
por ela se morria estupidamente.

Os que morriam, obviamente.

ANTÓNIO OSÓRIO

Pró Daniel Abrunheiro,
com amizade.

Venturoso foi António,
Osório, de apelido.
Inda chorava no berço
E já tinha Camões lido.

Com um pai tão preparado
Prá arte de versejar,
As trovas de Luís Vaz
Eram canções de ninar.

Quem aprende assim no berço
Com tanta calma e rigor
Pensa e age, serenamente,
e o poema nasce sem dor.

terça-feira, dezembro 19, 2006

ACTUALIDADE

Santa Iria de Azóia, 17 de Janeiro de 2003 – Está na moda dizer mal da Função Pública. Diz o director do jornal e o patrão dos patrões, o homem do governo e o da oposição, o cidadão comum e o mais altamente colocado, o inteligente e o estúpido, etc. É a grande fraternidade para um regabofe de maldizer.

E os funcionários públicos merecem o chorrilho de disparates que sobre eles se vai dizendo e insinuando, porque, de um modo geral, os “opinantes” são uma cambada de ignorantes que não sabem fazer – ou não querem fazer a destrinça – das coisas. Os funcionários públicos são apenas os meros executantes, em muitos casos sem meios, do frenesim legislativo dos políticos governantes e do parlamento, cujo fito é controlar, controlar cada vez mais a vida dos cidadãos, para poderem controlar o poder – supostamente democrático – que exercem despudoradamente, ora mentindo, ora simulando falar a verdade.

Há, com certeza, muitos calaceiros na Função Pública. Há, com certeza, quem se aproveite da função para obter vantagens. Há, com certeza, muita gente que deveria estar algures, longe da coisa pública, para que as águas deixem de estar inquinadas. Há, com certeza! Mas há, igualmente, homens e mulheres honestos. Há, igualmente, centenas de milhar de pessoas que merecem respeito e consideração. Não me seria difícil contar aqui meia dúzia de situações que ilustram a desfaçatez de muitos dos tratantes da coisa pública.

O mito do privado é um mito e como todos os mitos, como dizia Pessoa, é o tudo que não é nada. Há bons e maus privados como há bons serviços públicos e bons servidores da coisa pública. Há muitos privados que, não fosse a política a miséria que é, estariam atrás das grades, porque são verdadeiros crápulas. A começar pelos que detêm os cordelinhos do mundo financeiro. Com a banca à cabeça, obviamente.

Esta onda de maledicência que varre a Função Pública esconde apenas culpas próprias de agentes vários, incapazes de alinhavar meia dúzia de ideias para reformar o que tem de ser reformado. Portugal é um país de pulhas e sacanas.


TINTO ARAGONÊS

Um bom tinto aragonês
Dá coragem e alegria.
Bebe tanto o português
E… é triste, quem diria?!


Dá coragem e alegria,
Na conta certa bebido.
Quem emborca em demasia
C’os burros é parecido.


Bebe tanto o português
Ao almoço e ao jantar,
Um copo de cada vez,
Aos golinhos, devagar.


E… é triste, quem diria?!
Quem bebe com devoção,
Deve sentir alegria.
Tristeza? Tristeza…Não!

NOITE DE LUA CHEIA

É noite de lua cheia,
Meu amor anda a rondar.
Já em mim o fogo ateia
E não o pode apagar.

Quem mo dera ter aqui
Para regar o braseiro.
Ai, amorzinho, eu, por ti,
Fugia para o Barreiro!

Ou outro sítio qualquer,
Que este fogo me devora.
A ti me quero render,
Vou sair daqui pra fora.

É noite de lua cheia
E de grande agitação.
Oh, tenho o mel na colmeia
Tão longe da tua mão!

segunda-feira, dezembro 18, 2006

REFLEXÃO

Não me venham falar da Pátria.
Não quero ouvir falar de pátrias
- nem desta, nem doutras -,
que as pátrias,
à semelhança dos deuses,
só sabem exigir sacrifícios,
desmedidos e vãos.
AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM, do autor Húngaro Sándor Márai, é um magnífico romance publicado pelas Edições Dom Quixote. A fábula poder-se-ia resumir como na badana do livro, mas a singularidade do romance, em minha opinião, reside no facto de, ente os capítulos 13 e 19, o narrador se eclipsar quase totalmente para que o velho general possa analisar a sua amizade com Konrád , o amigo de infância, que mais tarde o havia de trair mantendo uma relação secreta com Krisztina, sua mulher.

Konrád foge e vai viver no Extremo Oriente. Henrik permanece na sua floresta, onde espera, primeiro, na casa de caça, que Krisztina morra; e, depois, no palácio decadente, que Konrád regresse ao local do crime. A acção decorre, à boa maneira da tragédia grega, em menos de vinte e quatro horas, no velho Castelo e a intriga consiste em o velho general apurar se Konrád e Krisztina tinham gizado, em comum, o plano para o eliminar de um dos vértices do triângulo amoroso.

Durante quarenta e um anos e quarenta e três dias, o velho militar analisou todos os pormenores até à exaustão; tinha obtido a resposta para todas as questões; tinha dissipado todas as dúvidas; queria, agora, confrontar Konrád com as conclusões e, de certo modo, fazê-lo pagar, responsabilizá-lo, pela sua responsabilidade no destroçar das três vidas.

Tenho dúvidas que Konrád seja uma verdadeira personagem durante este jantar de acerto de contas. É antes de mais o pretexto para uma profunda reflexão sobre o sempiterno tema da amizade, onde Márai deixa passar a ideia de que comporta sempre uma «pitada de Eros». Henrik é o veículo para esse discurso que flui como um rio e onde as interrogações têm uma mera função retórica. O jantar é uma cena única e o discurso apenas a parte material de um admirável monólogo interior, entre o anoitecer de um dia e o amanhecer do dia seguinte.

O NATAL

Lisboa, 23 de Dezembro de 2002 – O Natal começa a tornar-se uma quadra aborrecida. Anda toda a gente num frenesim desenfreado, como se o mundo fosse a acabar: viagens, prendas, almoços, jantares, jantares, almoços, prendas e viagens. É a loucura quase total. Riem-se os comerciantes de tudo e mais alguma coisa e cantam os industriais da restauração. Esquecem-se por uns dias as carências quotidianas para se gastar o que se não tem.

Na minha infância o Natal era diferente: minha mãe fazia filhoses, cantava-se o menino Jesus à roda dos madeiros e ia-se à missa do galo. No dia de Natal estreava-se uma camisola ou uma camisinha e brinquedos não havia. É verdade que a quadra não transpirava esta fraternidade actual, mas era, quanto a mim, muito mais autêntica.

D. Quixote eclipsou-se e quem manda agora é Sancho Pança. Temos de esperar que volte D. Quixote, para que a quadra reganhe o seu simbolismo e alegrias tradicionais. Esta fraternidade cheira-me a uma coisa que não vou nomear. Ou se insistem nomeio. Hipocrisia! Arranjinhos de comerciantes e quejandos para desgraçarem as nossas bolsas.

Aqui ficam três quadras da minha infância, que todos cantávamos do Natal até aos Reis:

Ó meu menino Jesus,
Ó meu menino tão belo,
Logo vieste nascer,
Na noite do caramelo!

Eu fui dar ‘ma volta ao adro
O madeiro está arder,
O presépio está armado
E o Menino por nascer.

Lá vai a barca bela,
Que a fizeram os pastores,
Nossa Senhora vai nela,
Toda coberta de flores.

MAFRA

Mafra, 17 de Dezembro de 2002 – Mafra é uma aldeia simpática. Nada ali fere a sensibilidade do visitante. Um largo muito concorrido, dois ou três cafés simpáticos e a nossa jóia joanina a dominar as restantes construções.

O Convento – o calhau, na linguagem garrida dos mafrenses-, celebrado num admirável romance de Saramago, tem a cara lavada. E digo a cara, porque há muitas dependências do interior do gigante que necessitariam de barrela geral. Segundo a vox populi , os subterrâneos são habitados por milhões de ratos.

Porém, como os ratos não se passeiam pelas ruas de Mafra, que aqui fique expressa a ideia de que Mafra é uma aldeia simpática e limpa e merecedora de um Presidente de Câmara mais português e menos PPD, ou seja, capaz de encaixar o Memorial do Convento e o seu autor. É que Presidente que manda fazer estradas e outras obras, mas não aceita o nome de Saramago para uma Escola da terra, não sei se merece ser Presidente.

Mafra é - e deverá ser em todas as circunstâncias -, uma aldeia simpática e limpa.

CASTELO BRANCO

Mata, 1 de Dezembro de 2002 – O centro de Castelo Branco está irreconhecível. As obras do projecto polis arrancaram a trinta e nove à hora e para quem vem de visita é a barafunda geral. Quem quem se habituou a comprar jornais no Vidal ou no João, filho do velho Albino, está tramado. Não sei concretamente o que vai sair das obras. Não li nada, nem vi maquetas. Espero paulatinamente para ver o resultado final e desejo que estejam a ser rasgados caminhos para o futuro.

Um café na Colmeia e aí vai ele, J. A Morão abaixo, direitinho à Mata que nem um tiro. Sempre achei que a Mata é a minha pátria primeira. A ideia pode parecer extravagante, mesmo espatafúrdia, mas há entre mim e o espaço da aldeia uma identificação tão profunda, que a minha memória anda sempre em ebulição.

Bem vistas as coisas, vivi muito mais tempo noutros sítios do que na Mata. Castelo Branco, Paris, Luanda e Santa Iria de Azóia, consumiram quase quatro quintos da minha existência. E no entanto, à semelhança de Ulisses, é para a Mata que quero voltar. Para ter Castelo Branco por perto. E outros espaços da Beira, que são para mim um verdadeiro roteiro sentimental.

O ter vindo à Mata e a Castelo Branco, neste dia primeiro de Dezembro... Provavelmente, está escrito no livro grande.

domingo, dezembro 17, 2006

MALVEIRA

Malveira, 26 de Novembro de 2002 – A Malveira, para dizer a verdade, já não é o que era. Transferida a feira para longe do Largo, dir-se-ia que acabaram com a vida a esta vila saloia, em cujo cemitério repousa Beatriz Costa, celebrizada pela franjinha e pelo sorriso gaiato.

Era natural de uma das localidades da freguesia da Malveira e nesta quis ficar sepultada, logo à entrada, tornando-se do cemitério o verdadeiro ex-libris, se é que assim se pode falar de mortos e cemitérios.

É verdade que o Largo já não chegava para as encomendas e que se tropeçava frequentemente nas espias das tendas dos vendedores. De qualquer modo, no meio daquela desordem – ou caos – havia uma certa ordem ou o princípio de uma certa ordem, que emprestava uma peculiaridade cativante a esta vila marcadamente rural, mas onde confluíam e confluem comerciantes de todo o país. Agora a coisa está arrumadinha num cantinho, tudo muito certinho, mas sem ponta de graça. Beatriz Costa havia de encontrar a ideia espatafúrdia e havia de o dizer alto e bom som, entre duas saborosas gargalhadas.

sábado, dezembro 16, 2006

CALDAS DA RAINHA

Caldas da Rainha, 28 de Setembro de 2002 – É hoje uma das cidades portuguesas com mais rotundas. Disse-me a Zélia que só Viseu ganha às Caldas. Provavelmente, permitem um melhor escoamento do tráfego rodoviário e reduzem a sinistralidade. Parece-me, no entanto, que a grande moda se está a generalizar a todo o país.

Se se tratar de um indício de desenvolvimento, que haja de norte a sul, de oriente a ocidente, multiplicação de rotundas. O que o país precisa é de desenvolvimento, um desenvolvimento sustentado, que nos permita uma real aproximação aos ricos, mas em que os nossos pobres se aproximem também, cada vez mais, dos pobres dos países ricos da Europa.

As Caldas têm crescido. A cidade já não é a mesma que conheci em Outono de 1973. Conserva, no entanto, uma infinidade de traços – para além da ordinarice da loiça –, que lhe conferem um carácter único.
As caldas da Rainha valem hoje sobretudo pelo frondoso parque municipal e pelo museu Malhoa. E ainda pela bonita e movimentada Praça da República.

VILA NOVA DE MILFONTES

Vila Nova de Milfontes – 26 de Setembro de 2002 - Tem crescido, mas não com o ritmo alucinante de outras regiões ribeirinhas do país. Não se vêem construções com as volumetrias doidas de Armação de Pêra e Portimão. As casas antigas estão bem conservadas e respeitam a tradição. O novo que se vai construindo não ofende ninguém.

O veraneante atento apercebe-se, também em Vila Nova de Milfontes, dos múltiplos rostos do Alentejo e da variedade das suas gentes. E particularmente dos seus traços comuns. O falar e o modo de estar são inconfundíveis. A calma é tanta, que, confesso, me custa a acreditar que é no concelho de Odemira que ocorrem mais suicídios em Portugal.

Haja bom senso e Vila Nova de Milfontes vai continuar a ser um dos locais mais aprazíveis de Portugal.

PREMONIÇÃO

Albufeira, 24 de Setembro de 2002 - A nossa irmã ( nós também somos filhos da grande Hispânia), onde vão coabitando muitos povos e sensibilidades, transpira riqueza por todos os poros. Soube modernizar-se a tempo e horas e tornar-se competitiva; soube tornar-se, no seio da União Europeia, um parceiro respeitado; sabe trabalhar e distribuir e andar de cerviz direita.

Quem viajar de Rosal para Aracena, encontrará soutos a perder de vista, frondosos e carregados de ouriços. São um regalo para quem olha com olhos de ver. Quem viajar para sul, em direcção a Huelva e em Lepe tomar a direcção de Ayamonte e Portugal, encontrará quilómetros e quilómetros de laranjais, e também de olivais, que constituem a prova eloquente de que a Espanha se distancia cada vez mais deste portugalzinho da trica, onde ninguém se preocupa com o futuro.

É com muita mágoa que escrevinho estas linhas, porque sei de fonte segura que mais tarde ou mais cedo teremos de nos ajeitar no seio da grande irmã. Ajoujados. Sem a altivez de galegos e catalães. Os bascos, esses, são loiça de outra fábrica.

CASTELO BRANCO

Castelo Branco, 6 de Setembro de 2002 - Castelo Branco é um vício. Um saboroso vício, diga-se em abono da verdade. Mesmo sem aqui ter casa, sinto-me, em cada rua, num espaço amigo e familiar.

Conheço-lhe quase todos os cantos. E às vezes embala-me a ilusão de que as mudanças não têm sido muitas; porém, quem se der ao trabalho de subir ao velho Castelo, perceberá quanto a cidade cresceu nos últimos quarenta anos.

Surgiram naturalmente novas centralidades. Seria difícil convergir para o seu belo centro histórico a partir do Ribeiro das Perdizes ou dos Bons Ares, da Líria ou do Montalvão. Sente-se, todavia, que o feitiço que nos prende à cidade anda por ali entre os Paços do Concelho e a Sé Catedral, a Rua Mártir S, Sebastião e a Rua D. Dinis. Quiçá, na sempre bonita Avenida Nuno Álvares Pereira.

Definitivamente, creio que Castelo Branco é um vício.

ARRUDA-DOS-VINHOS

Arruda-dos-Vinhos, 29 de Agosto de 2002 - A Fresca, à torreira do sol, confesso, não é nada agradável. Daqui vai a minha solidariedade para todos aqueles que têm de ganhar a vida, ora sob um sol inclemente, ora debaixo de chuva, ora vergastados pelo vento.

Arruda-dos-Vinhos tem crescido imenso nos últimos anos. A auto-estrada avança a olhos vistos, e, dentro de pouco tempo, a antiga vilazinha, situada a noroeste(?) de Lisboa, ver-se-á transformada numa cidade dormitório da capital do reino.
Que diria Irene Lisboa, se agora ressuscitasse, e quisesse visitar a sua Arruda natal, perante tanta construção? A pergunta é displicente, porque os Keil do Amaral já falecidos teriam atitude idêntica em relação a Camarate.

Sei perfeitamente que há planos directores municipais e a consciência cívica que se opõem ao crescimento sem regras. Sei igualmente do apetite voraz da rapaziada da construção. Quem ganhará esta guerra?

A Arruda ainda não está completamente descaracterizada, mas temo que isso venha a acontecer num prazo não muito dilatado. Os sinais são demasiado evidentes.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

OS EUA, A CIA E PINOCHET

A AMÉRICA NÃO SABE CONTAR OS VOTOS!
S. Domingos de Rana, 14 de Novembro de 2000 - A virtuosa América, que tem prescrito os remédios para as crises políticas do mundo inteiro, parece não ter agora a solução molagrosa para a sua própria crise e corre o risco de entrar para o clube dos curandeiros e charlatães. E seja qual for o eleito, Bush ou Gore, não se livra do anátema de fraude eleitoral. A virtuosa América vai aprender, por sua conta e risco, que não se deve cuspir para o ar.
Neste preciso dia, soube-se também que a CIA - a sempre virtuosa CIA -, que o Papa devia canonizar, deu, no já longínquo Setembro de 1973, uma ajudinha inestimável ao democratíssimo Augusto Pinochet, que derrubou Salvador Allende e governou o Chile até há menos de um ano, com os virtuosos processos da pátria da democracia. Os documentos confirmam apenas as evidências, o segredo de Polichinelo, o óbvio.
Como Gregory Corso, pergunto: quando é que ganhas juízo, América?
( Quem disse que a escrita de um diário é efémera?)

quarta-feira, dezembro 13, 2006

O PASSADO E O PRESENTE

Santa Iria de Azóia, 10 de Dezembro de 2002 – Greve geral. É sempre um dia de grandes tensões. Os números nunca batem certo e os ministros, sejam do PS ou do PPD/CDS, tentam sempre menorizar os trabalhadores. Deste feita foi aquela figurinha esquálida, Bagão de apelido, que veio lançar a poeira para os olhos do povo. O que me dana mais nesta caca toda é que tenho de partilhar a nacionalidade com semelhante indivíduo.
O antigo camarada Zé Manel repete até à exaustão que não há alternativa à política do Governo. Ao abrir a boca, a criatura mostra-nos os seus argumentos cheios de cáries, porque não mudou rigorosamente nada. Continua totalitário como nos idos de 74. Então só há uma solução para os problemas do país?
De facto, sou um campónio armado em esperto. Pensava eu que havia sempre uma panóplia de soluções para os problemas do meu país. Constato agora, incrédulo, que não, que não há alternativa à política do governo. Durão dixit . Três vezes nove são vinte sete e acabou-se. O que está dito está dito e passa a ter força de lei.
O que me atormenta, no momento presente é o facto cada vez mais evidente de Portugal parecer, cada dia que passa, um livro fechado.


terça-feira, dezembro 12, 2006

LÁZARO

De Lázaro
Falam
Os Evangelhos;
Porém,
O próprio,
Maravilhado,
Remeteu-se
Ao silêncio
E nada
Disse.

Compreensivelmente.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

A INVEJA

Em Portugal, não há invejosos. Perguntem a cada indígena se é invejoso e verão a resposta que obtêm. Que não, que é sentimento que não experimentam, mas que têm vizinhos com esse maldito defeito, a que também chamam “dor de cotovelo” e “dor de corno”. Quanto a esta última expressão não a voltarei a repetir, devido ao respeito que devo à pátria de Fernando Pessoa, ainda que nela se tenham expressado bastardos como Bocage e Natália Correia e também ao sentimento de nojo que nos devem merecer todos aqueles que, atraiçoados devida ou indevidamente pelas consortes, sofrem, para além da própria “coita” individual, o opróbrio de uma sociedade mexeriqueira e mesquinha.

Estou firmemente convencido de que os portugueses e as portuguesas - a ordem é arbitrária - só não têm inveja dos... hasteados de um e de outro sexo. No que concerne à generalidade das coisas da vida, é óbvio que somos invejosos. Invejamos a loira que coube em sorte ao nosso vizinho do quinto andar; invejamos a bruta vivenda do nosso amigo, ainda que gostemos de lá ir a pretexto de um copo e de dois dedos saudosos de conversa; invejamos o BMW, último grito, adquirido pelo proprietário do supermercado onde compramos as cervejolas; invejamos o cargo de direcção ocupado por um antigo condiscípulo, que nunca dera nas vistas enquanto estudante, mas que teve inteligência para ir desbravando caminhos, atropelando tudo e todos; invejamos até, pasme-se, um naco de prosa escorreita e telúrica como a que produziu Miguel Torga.
Obviamente que só invejamos as coisas boas, porque as más..., essas, que fiquem para os outros! É como na história do bêbado, todos reparam nos copos que bebe, mas poucos se ralam com os trambolhões que dá.

Para além dos execráveis prestamistas, que constituem a mais abominável casta de invejosos; há aqueles que, sendo tão invejosos como os restantes, andam permanentemente a falar de justiça, como se fosse possível realizá-la, a partir de um sistema que só sabe gerar injustiça. Aprendi a desconfiar, há muitos anos, daqueles que por tudo e por nada falam de justiça.

Para terminar, quero abordar o problema da competição. Penso que esta é salutar, desde que não seja embotada pela inveja. E sobretudo, se não derrogar os antigos códigos éticos. Porque a competição que condena o indivíduo a viver no seu metro quadrado e com os olhos permanentemente cravados no próprio umbigo, capaz de cilindrar o adversário na curva mais apertada, faz deste competidor um ser mais abominável que o próprio invejoso.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

O PECADO DA GULA

O pecado da gula anda associado aos excessos de comida e de bebida. E é, indiscutivelmente, um dos pecados mais recorrentes nos países católicos, apostólicos e romanos e protestantes da Europa Ocidental. Poder-se-á dizer, para evitar discriminacões obvias, que é o pecado mais recorrente de toda a Civilização Ocidental.

Quando os portugueses reflectem acerca da vida e dos seus valores mais altos, dizem normalmente que não há nada melhor do que comer, beber e... passear. E se atentarmos na prática dos povos da União Europeia, verificamos, com muita facilidade, que todos incorrem no mesmo tipo de delito, à luz da doutrina da Igreja: os protestantes do Norte bebendo álcool em excesso, os católicos do Sul, comendo e bebendo excessivamente.

No caso concreto do português comum, ainda que não conheça casos como os descritos por Rabelais no Pantagruel ou por Garcia Marquez nos Cem Anos de Solidão, poder-se-á dizer que se trata de um bom garfo e de um bom copo e a sua imaginação não tem limites: come bifes de atum, de espadarte, de porco, de peru e até de frango. Mas o verdadeiro português - o mais arreigado às tradições nacionais - adora sopinha de feijão e juliana, favas cozinhadas de todas as formas e feitios, feijoada à transmontana, grão com bacalhau e bacalhau cozinhado de trezentas e sessenta e cinco formas diferentes, nos anos comuns, rancho à transmontana, grão à campaniço, carne de porco à alentejana e... até cabra de chanfana, etc., porque a lista, podia ser mais exaustiva.

No domínio das sobremesas refiro o vulgar arroz-doce, o pudim, a musse de chocolate, o leitinho-creme, o molotove, a tarte de maçã, a tarte de amêndoa, a torta de laranja, a torta de cenoura, as farófias, as tijeladas, a baba de camelo, as barrigas-de-freira e os suspiros.

Quanto às bebidas é como o Jacinto: ou branco ou tinto. De preferência muito e português. E para rematar um opíparo repasto - nada de uísques ou conhaques-, uma bagaceira genuína, produzida por um parente, na província.

Lidos ou ouvidos os últimos parágrafos, qual de vós, caros leitores ou ouvintes, não cometeu já o pecado da gula, pelo menos em pensamento? Qual de vós terá esquecido o resto da sobremesa que o colesterol e a diabetes desaconselha, do bagacinho que o Código da Estrada pune, do pastelinho que a linha reprime?

Não falarei, por uma questão de decoro, das múltiplas acepções do verbo comer. Romanizados muito cedo, permanecemos irredutíveis seguidores desse grande povo que adorava o convívio e a mesa. Peço-vos encarecidamente que transmitais aos vossos filhos o gosto imoderado pela comida, para que jamais sejamos assimilados por hábitos alimentares estranhos à nossa tradição cultural. Confesso que sofreria imenso se visse os portugueses rendidos à cultura do hamburger e da Coca-Cola . O exemplo americano é paradigmático: grandes e desconformes físicos, passe a pequena redundância, mas um chocante desconhecimento no tocante ( conheço uma dona dos impostos, que substitui tocante por tange, na prosa das circulares. Acode-lhe, Orfeu!) aos prazeres da mesa. Preservemos, pois, caríssimos concidadãos, o queijo da serra genuíno, as fêveras e a entremeada dos nossos porcos de montado; os rojões à moda do Minho e a carne de porco à alentejana; o vinho das nossas adegas particulares, porque esta é a forma mais autêntica de afirmarmos a nossa identidade nacional .

O DILÚVIO

Bem vistas as coisas, tudo filtrado pelo inexorável tempo – ah, essa misteriosa entidade, que protege todos os déspotas! -, a vida decorria sem inquietações, até ao dia do dilúvio que devastou a nossa frágil casa e nos trouxe horas e mais horas de infindável sofrimento e desespero.

Eu quis ser firme e decidido como os antigos generais e aguentar-me à tona das águas e ser paciente e acreditar que tudo teria uma solução. Destruída a casa, perdida a caixa onde guardara todos os sonhos, senti-me triste e fraco e deixei que as lágrimas aumentassem o caudal das águas.

De certa maneira - prefiro a expressão francesa “dans un certain sens” -, senti o desespero dos bíblicos judeus na antiquíssima Babilónia; porém, nunca fiz promessas nem implorei a Deus.

As águas baixaram e a casa há-de reconstruir-se. Irrecuperável, só a caixa onde guardara todos os sonhos.

domingo, dezembro 03, 2006

VENEZA

Veneza tem mil canais,
Gôndolas e gondoleiros.
Tem muitas noivas aos ais
E rixas de marinheiros.

Andar nas ruas a pé
(palmilhar toda a cidade)
Vê-se o que Veneza é,
Na sua complexidade.

Becos, ruas e ruelas
E água por toda a parte.
Muitas raparigas belas,
Valiosas obras de arte.

Máscaras de mil modelos,
Que os carnavais são famosos.
Chocolates é só qu’rê-los,
Venham de lá os gulosos.

Recuerdos em murano,
- o vidro da região -,
passam de ano para ano,
de estação em estação.


A verdadeira beleza,
Desta cidade invulgar,
(e existe com certeza),
só a vislumbro do mar.

Quando o astro a alumia
- vista do grande Canal -,
ela é cor, ela é magia
é um mundo sem igual!

São Marcos é devoção,
Arquitectura e lazer,
As coisas da rel’gião,
Os palácios pra ver.

Na esplanada do Ravena,
Um café saborear.
Se a tarde ‘stiver amena,
Quem poderá olvidar?

Veneza tem mil canais,
E uma secreta beleza…
Durará mil anos mais?
Há-de durar com certeza!

sexta-feira, dezembro 01, 2006

IBERISMO

Republicação

O ministro dos comboios e dos aeroportos disse há dias, para desgraça e gáudio de uma direita velhaca e oportunista, que era iberista. E a dita direita fez um escarcéu de tal ordem, que o dito ministro e o seu chefe de governo sentiram necessidade de dar explicações.
Eu sou iberista e não tenho medo, e acrescento hoje, nem vergonha de afirmar o meu iberismo, alto e bom som, como não tenho quaisquer dúvidas em afirmar, como já anteriormente o fez Miguel Torga, que a minha pátria telúrica só termina nos Pirinéus. E mais, se sou habitante da Ibéria, sou ibérico, naturalmente. Coisa diferente é ser espanhol, porque hispânico também sou. E suponho que Natália Correia também se sentia hispânica.
No início do actual milénio, alguém afirmou que o milénio anterior foi o dos pequenos estados como Portugal e que o actual será o do seu desaparecimento. E provavelmente o vaticínio é correcto, mas nenhum de nós cá estará para certificar a sua justeza.
Sabe-se, igualmente, que na origem de Portugal estiveram apenas razões de índole política. Basta ler com atenção a "Formação de Portugal" do sábio Orlando Ribeiro, que não era propriamente um homem de esquerda, para perceber estas coisas comezinhas. O tempo, é mais do que evidente, foi cavando as diferenças que marcam hoje a singularidade de Portugal em relação aos restantes povos ibéricos.
É bom lembrar, no entanto, que os reis da dinastia de Avis tentaram a fusão dos reinos peninsulares e que a questão cantral passou sempre por saber quem havia de montar o cavalo do poder.
Seja como for, não é com esta gritaria toda que se discutem ideias. E isto já é peixeirada!
Eles sabem que a união ibérica lhes retiraria a capacidade que vão tendo de administrar a quinta.