O pecado da gula anda associado aos excessos de comida e de bebida. E é, indiscutivelmente, um dos pecados mais recorrentes nos países católicos, apostólicos e romanos e protestantes da Europa Ocidental. Poder-se-á dizer, para evitar discriminacões obvias, que é o pecado mais recorrente de toda a Civilização Ocidental.
Quando os portugueses reflectem acerca da vida e dos seus valores mais altos, dizem normalmente que não há nada melhor do que comer, beber e... passear. E se atentarmos na prática dos povos da União Europeia, verificamos, com muita facilidade, que todos incorrem no mesmo tipo de delito, à luz da doutrina da Igreja: os protestantes do Norte bebendo álcool em excesso, os católicos do Sul, comendo e bebendo excessivamente.
No caso concreto do português comum, ainda que não conheça casos como os descritos por Rabelais no Pantagruel ou por Garcia Marquez nos Cem Anos de Solidão, poder-se-á dizer que se trata de um bom garfo e de um bom copo e a sua imaginação não tem limites: come bifes de atum, de espadarte, de porco, de peru e até de frango. Mas o verdadeiro português - o mais arreigado às tradições nacionais - adora sopinha de feijão e juliana, favas cozinhadas de todas as formas e feitios, feijoada à transmontana, grão com bacalhau e bacalhau cozinhado de trezentas e sessenta e cinco formas diferentes, nos anos comuns, rancho à transmontana, grão à campaniço, carne de porco à alentejana e... até cabra de chanfana, etc., porque a lista, podia ser mais exaustiva.
No domínio das sobremesas refiro o vulgar arroz-doce, o pudim, a musse de chocolate, o leitinho-creme, o molotove, a tarte de maçã, a tarte de amêndoa, a torta de laranja, a torta de cenoura, as farófias, as tijeladas, a baba de camelo, as barrigas-de-freira e os suspiros.
Quanto às bebidas é como o Jacinto: ou branco ou tinto. De preferência muito e português. E para rematar um opíparo repasto - nada de uísques ou conhaques-, uma bagaceira genuína, produzida por um parente, na província.
Lidos ou ouvidos os últimos parágrafos, qual de vós, caros leitores ou ouvintes, não cometeu já o pecado da gula, pelo menos em pensamento? Qual de vós terá esquecido o resto da sobremesa que o colesterol e a diabetes desaconselha, do bagacinho que o Código da Estrada pune, do pastelinho que a linha reprime?
Não falarei, por uma questão de decoro, das múltiplas acepções do verbo comer. Romanizados muito cedo, permanecemos irredutíveis seguidores desse grande povo que adorava o convívio e a mesa. Peço-vos encarecidamente que transmitais aos vossos filhos o gosto imoderado pela comida, para que jamais sejamos assimilados por hábitos alimentares estranhos à nossa tradição cultural. Confesso que sofreria imenso se visse os portugueses rendidos à cultura do hamburger e da Coca-Cola . O exemplo americano é paradigmático: grandes e desconformes físicos, passe a pequena redundância, mas um chocante desconhecimento no tocante ( conheço uma dona dos impostos, que substitui tocante por tange, na prosa das circulares. Acode-lhe, Orfeu!) aos prazeres da mesa. Preservemos, pois, caríssimos concidadãos, o queijo da serra genuíno, as fêveras e a entremeada dos nossos porcos de montado; os rojões à moda do Minho e a carne de porco à alentejana; o vinho das nossas adegas particulares, porque esta é a forma mais autêntica de afirmarmos a nossa identidade nacional .
4 comentários:
Olá Manuel :)
esta conversa fez-me fome! E acabei de jantar ;)
mas de facto a comida é algo de que sentimos falta quando estamos longe. Mesmo muita falta. Acredita.
O pão, por ex, o pão alentejano em particular, é uma das coisas de que sinto mais saudades. Mas até uma daquelas carcaças ranhosas de que não sou muito apreciadora ia bem agora :)
comer bem não pode ser pecado. O excesso aliado à má alimentação ocidental é que, comparado com a fome que se vive em muitos países do mundo, pode ser pecaminoso.
Olá Papu,
Mandar-te-ia, de boa vontade, um casqueiro alentejano; mas chegaria duro e pior que uma carcaça ranhosa.
Este texto é velho - ainda era professor, quando o escrevi - e fi-lo para brincar com os meus alunos. Hão-de aparecer os outros pecados todos.
Manel,
O pecado maior, o mais obsceno, é a fome neste mundo, dito de abundância!...A Papu disse-o muito bem. Conheço bem a história dos pecados...Mas valerá a pena reflectir na comida que nos querem dar, por mais embalada e calibrada que seja! E a comida que se impinge às criancas nas nossas escolas, para não dizer nas nossas casas?! A comida de plástico veio para ficar?!
Eu sou adepto da nossa gastronomia tradicional, como muito bem sabes! Um dia destes desafio-te para mais uma sessão...
Um abraço,
Zé Ribeiro
A obscenidade maior é, com efeito, o desperdício das sociedades ditas desenvolvidas.
Esta minha quase paródia, ou mesmo paródia, se preferirem, tem a ver com a grande imaginação portuguesa para a culinária.
Isto é um pouco como no teatro: o La Féria faz aquelas encenações feéricas, exageradamente ricas; outros, com menos meios, fazem coisas excepcionais com grande economia de meios.
Exemplifiquemos com uma açorda alentejana: água a ferver, coentros, pão partido às fatias, um ovo escalfado e aí temos um prato típico e saudável.
Eu, Manuel, pecador me confesso!
Um abraço
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