quarta-feira, outubro 31, 2007

MEMÓRIA

Nas manhãs de Junho,
quando o sol tudo doirava,
a nossa casa era também
a sombra da oliveira
do outro lado da rua.

Guardo memória, mãe!,
da nossa rua térrea
e vejo-te jovem
algodão dobando
à sombra da oliveira
do outro lado da rua.

Nas manhãs de Junho,
quando o trigo amadurecia
e eu brincava brincava
à sombra da oliveira
do outro lado da rua.

Fazia-te mil perguntas
- mil ou muitas mais -
e tu respondias sem enfado
à sombra da oliveira
do outro lado da rua.

E eu era feliz
e tu eras feliz, mãe!,
à sombra da oliveira
do outro lado da rua.

Do outro lado da rua
à sombra da oliveira.

sábado, outubro 27, 2007

PEDRO E INÊS

Copiadas do romance Inês de Castro de Maria Pilar Queralt Hierro


Dónde vas el caballero,
dónde vas, triste de ti?
que la tu querida esposa
muerta está que yo la vi.
Las señas que ella tenía
bien te las sabré decir:
su garganta es de alabastro
e sus manos de marfil.



Luis Vélez de Guevara, Reinar Después de Morir.

O TEMPO

À Alex, que luta denodadamente, com o tempo
O tempo – essa coisa misteriosa que se conta em milénios, séculos, anos, meses, dias, horas, minutos e segundos – alguém saberá ao certo o que é? E no entanto, nada escraviza mais o Homem do que o tempo, que as gramáticas organizam em passado, presente e futuro, mas que, no fundo, é apenas passado e futuro.
O tempo – essa coisa estranha que dá alento aos tiranos e torna precárias as acções dos heróis, que destrói as verdades eternas dos teólogos e os sistemas infalíveis dos filósofos, que tudo e todos condena ao esquecimento – alguém saberá ao certo o que é?
No seu perpétuo fluir, o tempo é o tempo, como diria o delicioso Caeiro.
Para mim, que não sou poeta nem literato, mas simplesmente um amigo de poetas e literatos, o tempo é o sol a levantar-se preguiçosamente do Tejo - é assim que eu o vejo das janelas da casa onde habito- que depois sobe e roda e desce, devagarinho, para desaparecer por detrás das casas, para de novo se levantar das mansas águas do Tejo e subir e rodar e descer e desaparecer e de novo se levantar das mansas águas do Tejo.
Barata, Manuel, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, Lisboa/2005

MATA


quinta-feira, outubro 25, 2007

DO MEU DIÁRIO (MANUEL COSTA ALVES)

Sesimbra, 22 de Julho de 2003 – Acabei de ler, na praia, o livro Podia Ser de Outra Maneira, da autoria do meteorologista Manuel Costa Alves. Albicastrense de gema, Costa Alves foi a agradável surpresa destas férias: ideias interessantes e uma prosa escorreita, aqui e ali salpicada de expressões bastante pitorescas. “Pagar as favas” e “tuta e meia”, são apenas duas das que retive.

Achei divertido o facto de ter detectado muitos pontos de contacto entre as preocupações e apreciações de Costa Alves e as minhas, apesar de nos separarem oito anos no calendário. Quem ler o meu livro Quadras Quase Populares ou o meu Diário há-de notar, seguramente, inúmeros pontos de contacto.

Aquela série de conversas entre um eu e um tu, em que o autor parece querer emprestar um carácter ficcional às suas apreciações acerca dos problemas que dominaram o mundo na segunda metade do séc. XX, é apenas a forma encontrada para conferir vivacidade às múltiplas narrativas que compõem o livro. Ainda que o processo possa remontar à antiguidade helénica ( quem é que não se lembra de um tal Platão e dos seus não menos célebres diálogos? ), é receita certa para prender o leitor do princípio ao fim ou do fim para o princípio, porque assim poderá ser lida a obra.

A unidade há-de o leitor encontrá-la precisamente naquela pretensa forma de dialogar com que o autor pretende fazer passar um longo monólogo, onde perpassam o “tempo de chumbo” da ditadura, reflexões acerca dos mitos portugueses, guerra colonial, Revolução de Outubro (aliás de Novembro), Guerra Civil de Espanha, religião, ciência, etc. E também naquele tom civilizado e amável que, na minha humilde opinião, é privilégio dos sábios.

Obrigado, Costa Alves!
Obrigado, Ulmeiro!
Obrigado, Zé Ribeiro!

segunda-feira, outubro 22, 2007

PEDRO E INEZ


Santa Iria de Azóia, 22 de Outubro de 2007-10-22

Lídia,

Henry de Montherlant acaba de me anunciar a morte de Inez. Não me deu conta dos pormenores; porém, com alguma cópia me falou do estado em que encontrou o príncipe, esta manhã, quando, após longa e cansativa cavalgada, chegou a Santa Clara.
Desesperado, Pedro ora contemplava, em silêncio, o rosto da sua bem-amada, ora irrompia, enlouquecido, por entre os presentes, prometendo vinganças futuras. Ninguém, mesmo entre os mais íntimos, ousava pronunciar uma palavra. Nunca, por amor, se vira tanta cólera e silêncios tão sepulcrais!
Inez viera com Constança e cedo conquistara o coração do príncipe. Era no seu alvíssimo colo, marfinado, como diz Lídia, que Pedro dava descanso ao fogoso corcel que o habitava. E era na alcova, após amorosas refregas, de dedos ainda entrelaçados, que Pedro pensava o futuro de Portugal.
Estulto, o povo, que apenas fornicar sabia, acusava este amor de mancebia e exigia do rei a resolução do caso. Filho de santa, o rei, que de seu pai não herdara os dotes do amor, ouviu os conselheiros e disse sim às suas pretensões.

O pior foi o que veio depois!

domingo, outubro 21, 2007

CARTA DE PEDRO A INEZ

Esposa minha, eu te protejo, de ti sou guardião
e mestre, e escravo também.
Tu és aquela que se deita tão suavemente sobre
o meu peito, seguindo o cavalo louco que aí se
abriga.
"Corça minha" abraça-me, acalma o meu desas-
sossego. Doce, marfinada e loira, a tua farta ca-
beleira se enrola nos meus dedos, atando neles o
cheiro da tua devoção.
Tu és o espírito e a carne reunidos num só traço
de beleza que me cobre de beijos e me cega. Este
amor é mais forte do que a vida, porque nele
renasço em cada passo que dou.
Pobre de mim e do lamento que se desfolha em
tuas mãos, deixando-te seca e ávida da minha
boca em teus seios.
Não chores Inez que as tuas lágrimas e a minha
sede conhecem o mesmo destino e percorrem a
tua face nesta hora de solidão e desespero.
A manhã espera-me do outro lado do rio e de
mãos dadas, num sorriso manso, beberei a gota
de orvalho que os teus lábios ainda adormecidos
me oferecem.
Martnez, Lídia, CARTAS DE PEDRO E INEZ, Ulmeiro,
1ª Ed., LisboaNov./94

sábado, outubro 20, 2007

MUSEU DO NEO-REALISMO

Santa Iria de Azóia, 20 de Outubro de 2007 – Vila Franca de Xira, a toureira, no dizer pitoresco de Garret, tem, a partir de hoje, um museu dedicado ao neo-realismo. Chamar-se-á Museu do Neo-Realismo. Finalmente, autores como Soeiro Pereira Gomes, Redol, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, Carlos de Oliveira, Sidónio Muralha e outros, terão ali um espaço que há-de ajudar a perpetuar as suas memórias. E também Joaquim Namorado!

Na verdade, só Vila Franca de Xira ou Alhandra mereciam este novo espaço museológico, pelas profundas relações que tiveram com Redol e Soeiro, respectivamente. E ainda pelo facto de ambas serem banhadas pelo Tejo, que serviu de espaço lúdico, de conspiração política e também narrativo, a muitos dos artistas que, comummente, são arrumados naquele movimento estético e ideológico.

O neo-realismo português tem, a partir de hoje, em Vila Franca de Xira, um museu que o há-de perpetuar. Ao contrário de outros períodos ou épocas da nossa literatura e/ou da nossa cultura. Não faltarão, decerto, os figurões do costume a tentar denegrir um dos movimentos literários e artísticos mais profícuos do séc. XX. Falarão das suas limitações estéticas, da obediência a uma determinada orientação ideológica, dos amanhãs que cantam, etc., como se as obras dos autores não fossem filhas da sua época, como notou, sabiamente, Júlia Kristeva.

Esta inauguração deveria ser também uma homenagem a Arquimedes da Silva Santos, natural da Póvoa de Santa Iria, que foi médico distinto, poeta inspirado e um cidadão impoluto e de grande humanidade. E um amigo das figuras gradas do neo-realismo. Mesmo sabendo nós que lhe foram feitas já diversas homenagens.

LIVRARTE (LIVROS E ARTE)


O homem da fotografia, dizem, tem a paixão dos livros. E a fotografia é disso a prova. Diz com graça, ele que foi criador da Assírio & Alvim, que é o & que liga nome próprio e apelido da sociedade comercial.

sexta-feira, outubro 19, 2007

UM NAMORADO PARA DONA AGOSTINA

O gato das fotografias é Mr Fred e tem o porte de um lord inglês. Ainda anda com quatro patas, mas tenho esperanças que um dia se erga e ande com duas.
Perece-me que seria um bom companheiro para a gatinha do Daniel? O que me diz a esta ideia, Lídia?



LISBOA E O TEJO

A nobre Lisboa tem
O vasto Tejo a seus pés
‘ma porta aberta ao vaivém
Rumoroso das marés.


Este Tejo que o Poeta
Morada das musas quis,
Foi a companhia certa
Deste pequeno país.


Cais de partida e chegada,
Quantos segredos ouviu?
Nunca quis revelar nada
Das coisas todas que viu.

Companheiro e confidente,
Nas horas boas e más,
Esteve sempre presente,
Discreto, calmo, sagaz.

quarta-feira, outubro 17, 2007

DO MEU DIÁRIO

Motivação: a série televisiva de Joaquim Furtado
Santa Iria de Azóia, 28 de Setembro de 2002 – Há vinte e oito anos, neste mesmo dia, a direita quis tomar o poder em Portugal e perdeu. Liderava António de Spínola, que era uma figura mítica da Guerra Colonial. Ocupava ocasionalmente a chefia do Estado.

Mobilizado para Angola, estava a aguardar embarque, em Tomar, que era a minha unidade mobilizadora. Os meus companheiros já se encontravam em Nambuangongo. Nessa noite, desloquei-me a Lisboa com o Fernando Farrajota e assistimos, no Londres, ao filme o Ovo da Serpente. Dos revoltosos não vimos sequer a sombra. Deparámo-nos apenas com as barricadas que os populares montaram ao longo da estrada, nomeadamente na então vermelha Alpiarça.
Conto estas coisas, porque nunca estive no centro dos acontecimentos. Nas datas mais significativas da revolução, estive sempre a muitas milhas do epicentro. Talvez a minha vocação seja a de mero espectador e não agente da História.

Não tenho acreditado que PC alguma vez tenha estado à beira de tomar o poder. Principalmente, porque a rapaziada que vende essa versão da História não tem revelado grande carácter. Tenho-os na conta de troca tintas, ainda que com vários matizes.

Quando se fala da descolonização e do modo como foi feita e sobretudo quando oiço rapazes que nunca estiveram o terreno a debitar acerca do tema, perco as estribeiras e... sinto-me tentado a mandá-los à merda. O Freitas Pinto do célebre batalhão de Cabinda foi meu companheiro de recruta e compartilhamos a mesma camarata no Caçadores 5, em Campolide. Alberto João Jardim e quejandos são ignorantes em matéria de descolonização. Ouvi-los debitar, arrepia-me até à medula.

terça-feira, outubro 16, 2007

MOIRINHAS ENCANTADAS

Pró meu amigo Zé Baeta

Vivo com esta mania
Das moirinhas encantadas.
São restos da fantasia
Dos velhos contos de fadas.

Entre Silves e Granada,
Procuro as lindas gazelas.
Ò moirinhas de Granada,
doces, amáveis e belas!

Nas margens do rio Arade,
Dou largas ao desvario.
Ò divina Sherazade,
Salta das águas do rio!

Em Silves, com Ibn ‘ Ammâr,
Queria, se pudesse ser,
De moiras tagarelar
E um vinho doce beber.

Al Mu ‘Tamid saudar
com respeitosa emoção.
Poeta, mais devagar…
Ai, tanta divagação!

Isto é apenas a parte
Do que em Silves penso e sinto.
Oh, cidade prenhe de arte!
Oh, meu cálice de absinto!

ADRIANO

Santa Iria de Azóia, 16 de Outubro de 2007 – Foi no carro, em viagem de Castelo Branco para a região de Lisboa, que tomei conhecimento da morte de Adriano Correia de Oliveira. Primeiro, foi a estupefacção própria destes momentos; e, depois, foi a comoção. Provavelmente, até às lágrimas.

Habituara-me a ouvir Adriano há muitos anos. Ainda na década de sessenta. E sempre o considerei a voz mais forte e cristalina de todos os nossos “trovadores”. Claro que havia o Zeca!; porém, a força da voz, aquele físico de gigante e aquela forma lhana de estar, faziam de Adriano um artista ímpar.

Hoje, decorridos 25 anos, Adriano poderá ser lembrado como aquele que nos deu a ver e a ouvir a força e a beleza das palavras dos poetas que cantou. Sem Adriano, Manuel Alegre seria outro.

sábado, outubro 13, 2007

LIVRARTE (LIVROS COM ARTE)


HÁ NAS RUAS NA LISBOA

Há nas ruas de Lisboa
Uma graça, um encanto,
Que nelas inda ressoa
Um pregão em cada canto.


O cauteleiro teimoso
Inda persiste, coitado!
Deixou o grito ruidoso,
Vende o jogo sem enfado.


Galhofeiras, as varinas
Têm tanta, tanta graça!
Suas línguas viperinas
São a pimenta da praça.


Eu sinto tanta saudade
Dos ardinas barulhosos.
Coloriam a cidade
Com seus pregões saborosos!...


À tardinha, no Rossio,
- Oh, era bonito de ver!
Os ardinas, em desvario,
Apregoar e a correr.


Mudou tanto esta cidade!
Marcas do tempo imparável,
Causam-me tanta saudade...
Oh, mudança inexorável!


Do pitoresco a saudade,
Que do resto nem pensar!
Nada paga a liberdade
Que o povo pode gozar.


Mas tudo o que permanece,
Genuíno e popular,
Minha alma tanto enternece,
Meu coração faz pulsar.

quinta-feira, outubro 11, 2007

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 11 de Outubro de 2007 - A França tem, a partir de ontem, um museu nacional da História da Imigração. Em Paris, no "Palais de la Porte Dorée". E pelos vistos, os "tugas" estão bem representados, a acreditar no DN.
A informação precedente é para Lídia Martinez, que vive no seu coin parisiense e não se dá conta destes eventos. A culpa não é de Lídia. A coisa fez-se com um certo secretismo, porque os tempos não estão de feição para os que procuram, actualmente, pão fora das fronteiras das suas pátrias. Este secretismo é apenas mais um sinal deste tempo iníquo que nos coube viver.
Há um paradoxo na minha relação com a França. Nunca percebi o fascinio que o país exerce sobre mim e o desamor que tenho pelos franceses. Um dia resolverei, teoricamente, este paradoxo, Lídia. Os franceses, na verdade, nunca gostaram dos portugueses. Gostavam do trabalho dos portugueses e do modo mais ou menos "guethizado" do nosso viver fora das fonteiras da pátria.
Hoje, as coisas não são diferentes. Houve apenas uma mudança qualitativa. Muitos portuguses tornaram-se empresários e influentes e já não são os patuscos dos anos sessenta. Acresce ainda o facto de muitos luso-descendentes ocuparem hoje altos cargos e possuírem "uma carta de identidade" da "République".

quarta-feira, outubro 10, 2007

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 10 de Outubro de 2007 – Foi hoje inaugurada, em Paris, uma exposição que tem por tema a EMIGRAÇÃO portuguesa em França. E o evento assume uma particular importância, partindo do pressuposto que os fenómenos migratórios para e/ou no interior da EU não merecem na actualidade a simpatia das populações e dos governos.

Fui emigrante nos anos setenta do século passado – quantas vezes já escrevi século passado? - e precisamente em França, onde os meus pais estiveram alguns anos. Conheço, assim, com o tal saber de experiência feito e não através de narrativas livrescas, com suas grandezas e misérias, o fenómeno da emigração. E posso asseverar que os portugueses, inicialmente, não tiveram vida fácil naquele país de acolhimento - e será que a têm agora, apesar de serem cidadãos europeus? -, onde já pontificavam as comunidades italiana e espanhola.

Os árabes eram muitos, nomeadamente os argelinos e os marroquinos; porém, ainda estavam muito vivas as feridas da guerra da Argélia; e c’os diabos, os magrebinos não eram europeus. Não mereciam a confiança dos empregadores e trabalhavam como serventes na construção civil.

Os homens portugueses trabalhavam na construção civil, onde eram, de um modo geral, pedreiros e serventes. Muitos tornaram-se pedreiros, após curtas aprendizagens, porque até aí tinham sido, muitas vezes, assalariados rurais. A indústria automóvel também absorveu mão-de-obra masculina lusitana. Fui amigo de muitos operários da Renault e da Citroen.

Os operários portugueses, antes de se tornarem respeitados e imprescindíveis, tiveram de obedecer às ordens de italianos e espanhóis, que tinham chegado antes e ocupavam os lugares de chefia nas obras. Foram sujeitos a muitas arbitrariedades e velhacarias. Mas foram os portugueses, quando italianos e espanhóis começaram a regressar às suas penínsulas, que ocuparam os seus lugares.

Os franceses gostavam muito dos portugueses, ou seja, do trabalho dos portugueses e do modo subserviente como o executavam. Gostavam, sobretudo, do seu modo de viver, pacífico e pouco exigente.



terça-feira, outubro 09, 2007

TRIPTICO PARA CHE GUIEVARA

Republicação

I

Ernesto
Tinha uma moto
E gostava
De viajar.

Ernesto sabia
De firme saber
Que a geografia
Se aprende
Em cada lugar.

Um dia,
Deixou mulher e filhos
E partiu.


II

A melancolia
Era só exterior.

Ernesto
Tinha
dentro de si
um indomável
corcel.

E um coração
Apaixonado
Como Carlos Gardel.



III

Cansado
Da pátria placidez
E de sonhos
A transbordar
Deixou mulher e filhos
Para não mais voltar.

E o ignoto médico dentista
- asmático por sinal –
Transformou-se
No símbolo
Da revolução universal.

segunda-feira, outubro 08, 2007

DO MEU DIÁRIO

Rememorando um mestre.
Santa Iria de Azóia, 15 de Outubro de 2002 – Mário Castrim, antigo professor de caligrafia, mas principalmente um grande utilizador da língua portuguesa e um excelente crítico de televisão - quiçá o melhor e mais profícuo de todos os que fizeram crítica televisiva em Portugal - , deixou-nos hoje definitivamente.

Aprendi a ler e a respeitar Mário Castrim nos idos de sessenta do século passado, quando a Pátria era governada pelos manholas do Estado Novo e os portugueses eram vigiados até na intimidade pelo aparelho repressivo do dito.

As crónicas de Mário Castrim, quase sempre truncadas pela censura, constituíam um hino à inteligência e à liberdade. Valiam sobretudo pelo desassombro das suas opiniões e pela graça do seu estilo – essa coisa que individualiza e que é a nossa única e verdadeira propriedade como diria um tal Carl Marx -, com que iludiu, frequentemente, os argutos coronéis do lápis azul. Castrim foi, não raras vezes, a brisa que passava e refrescava os nossos corações.

De Aveiro, só podia ser velado na igreja de Santa Joana Princesa.

domingo, outubro 07, 2007

DO MEU DIÁRIO

Charneca da Cotovia, 5 de Outubro de 2007 – No fundo, o 5 de Outubro é um feriado nacional e uns quantos discursos repetitivos, previsíveis e inconsequentes. Antes do 25 de Abril, um pouco por todo o país, a data era aproveitada para a (re)afirmação dos valores da democracia e da liberdade. Realizavam-se jantares comemorativos, que eram vigiados pela polícia do contabilista de Santa Comba.

Este ano, o Senhor Presidente da República falou de EDUCAÇÃO. Disse coisas mais ou menos óbvias, que em princípio são aceites pela maioria da população: necessidade de estabilidade dos corpos docentes das escolas e empenhamento de professores, alunos e pais, no processo educativo.

Quanto à estabilidade, quer-me parecer que as novas regras de colocação de professores apresentam, à partida, um carácter positivo. Não agradarão a todos os professores, mas nesta como noutras matérias não haverá unanimidade.

Já o funcionamento da comunidade escolar – professores, alunos e pais –, vai contar com grandes dificuldades. A ESCOLA tem sido organizada em função dos interesses dos docentes, desde a elaboração de horários até às horas de atendimento dos pais e/ou encarregados de educação. E assim continuará a ser, se a gestão dos estabelecimentos escolares continuar entregue aos professores.

Do alto dos seus canudos, não fazem autocrítica e convivem mal com as críticas feitas ao seu trabalho por pais e/ou encarregados de educação. Por norma prestam mais atenção aos melhores alunos e preocupam-se pouco com os menos dotados. Os pais mais intervenientes são olhados de soslaio pelos directores de turma e pelos pais dos alunos com melhor aproveitamento. No interior das escolas, defendem-se corporativamente. Fui professor durante quinze anos e ainda sou encarregado de educação.

È justo que se reconheça, no entanto, que os professores têm sido maltratados pela 5 de Outubro. E não vai ser com a ministra Rodrigues que as coisas vão melhorar. Este socrático governo abomina os trabalhadores e os seus sindicatos representativos e os docentes não serão excepção à regra. E com o “super havit” de professores que vai por aí, é de louvar a coragem com que têm defendido os seus direitos.

Decorrente ainda das comemorações do 5 de Outubro e do seu tema central, a educação, há a realçar a tirada de Sócrates que exortou aqueles que dizem que a educação é cara a experimentarem a ignorância. Creio, todavia, que fez sua uma máxima sindical e tendo a pessoa em questão os sindicatos em tão má conta, melhor seria que argumentasse com ciência própria.

E era bom ainda, que o chefe do governo desse provas inequívocas de que tem a educação e a qualificação dos portugueses no rol das suas prioridades. E ajudasse a estimular o funcionamento da chamada comunidade escolar. Para bem de Portugal.

Pró ano há mais.

quarta-feira, outubro 03, 2007

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 3 de Outubro de 2007 – Quando deixei Paris, em Agosto de 1971, a cidade era muito diferente da actual. A demolição dos antigos Halles e a construção, no mesmo espaço, do”Fórum” e do Centro Georges Pompidou, assim como os novos enquadramento, transformaram completamente o “Quartier”.

É certo que se perderam as construções em ferro, o chamado estilo Baltard ou Napoleão III (será assim Lídia? Pergunta-se a quem sabe); porém, libertou-se o espaço do mercado abastecedor e as múltiplas ofertas criadas entretanto, nos domínios da cultura e do lazer, demonstram que a opção foi acertada.

Um tal Pablo Diego de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedíos Cipriano de la Santísima Trinidad Martyr Patrício Clito Ruiz y Picasso completaria 90 anos em Outubro daquele ano, mas as comemorações começaram muitos meses antes, com exposições e outros eventos. Foi o momento para idolatrar um dos grandes génios da pintura do séc. XX. Escrevo aqui o nome completo de Pablo Picasso, porque me lembrei de um poema de Rafael Albertí, no qual o poeta de Puerto de Santa María reflecte acerca da felicidade da escolha feita por Picasso. Juan Nepomuceno teria tido o mesmo sucesso? E Patrício Clito? Perguntas minhas sugeridas pelas de Albertí.

As comemorações dos 90 anos de Pablo Picasso – ou a parte mais significativa delas – , tiveram lugar nos antigos Halles. A demolição estende-se, assim, à minha própria memória cultural. Devo dizer, no entanto, que foi nos novos Halles que entrei, pela primeira vez, numa loja FNAC. Atraído pelo cheiro do papel, obviamente.
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terça-feira, outubro 02, 2007

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 2 de Outubro de 2007 – António Coimbra era, obviamente, António Coimbra Martins, professor na Sorbonne e queirosiano com algum mérito. Recebeu-nos uma vez, quando lhe propusemos a edição de uma revista bilingue de temas portugueses. Exilado, mas já a pensar no regresso, estava ali para viver a sua “aurea mediocritas”, calmamente e sem riscos. A Revolução(?) de Abril fê-lo deputado e não sei se ministro. Entretanto, passou o seu prazo de validade para a política.

Nesse Varão, o Verão de todos os Martins, apareceram o P. Álvaro e o Joaquim Leonardo, este último ainda estudante de História. O Joaquim encontrei-o muitas vezes, anos depois, em Castelo Branco, onde tem sido professor e autarca. O Álvaro Martins encontrei-o vinte e cinco anos mais tarde, durante as cerimónias fúnebres de um amigo, no cemitério de Carnide, em Lisboa.

Reconheci-o pela voz e já não era o P. Álvaro que conheci na capital francesa, magro e jovem, que me lembro de ter exclamado a meio da ponte “Saint Michel”: “ estamos no centro do mundo!” Imaginei-o muitas vezes despadrado, ao longo dos anos. Mas não! E ali estava à minha frente, com os paramentos adequados para a celebração das cerimónias fúnebres do Jorge Silva. Não o voltei a ver. É o pároco da freguesia lisboeta da Ameixoeira.

Estes encontros aconteciam no “foyer” da Aliança Francesa, que também frequentei até ao 5º grau, mas que abandonei para me dedicar a outras matérias. Na verdade, poder-se-á dizer com todo o rigor, que era ali, na “Rue Fleurus”, que liga o Boulevard Raspail ao jardim do Luxembourg, que se podia encontrar gente de todo o mundo: europeus, americanos, africanos e asiáticos. Resumindo: o mundo!, através das pessoas.

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ÓSCAR LOPES

Santa Iria de Azóia, 2 de Outubro de 2007 – Óscar Lopes, vulto maior da cultura portuguesa do séc. XX, está a ser homenageado pela Câmara Municipal de Matosinhos. Já tinha lido a notícia numa das últimas edições do JL e ontem, logo de manhã, ouvi notícia nova na Antena-1 da RDP.

Para quem não saiba – e eu também não sei muito –, o co-autor da História da Literatura Portuguesa, para além do Latim e do Grego, que ensinou enquanto pode nos liceus, é versado em diversas áreas da linguística, nomeadamente lógica matemática aplicada à dita, foi professor universitário de méritos indiscutíveis, um dos críticos mais profícuos da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX e ainda um melómano praticante do piano.

Enumerar os diversos trabalhos de Óscar Lopes, seria fastidioso no âmbito deste apontamento diarístico, que pretende somente que a homenagem não passe despercebida, divulgando-a entre o meu modesto pecúlio de leitores. É que Óscar Lopes, contra a vontade de muitos pigmeus que pululam por aí, afirmou-se como um dos maiores e melhores portugueses do seu tempo. E quiçá, o mais generoso de todos eles, dando a ler aos seus concidadãos uma verdadeira míriade de autores. Que muitas vezes não coincidiam como as suas opções estéticas e ideológicas.

Arrisco a dizer, aqui e agora, que não houve portugueses mais sábios do que Lopes, durante todo o séc. XX.

segunda-feira, outubro 01, 2007

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 1 de Outubro de 2007 – Disseram-me há dias que a vida, em França, está pelas horas da morte. E acredito. Outra coisa não seria de esperar, no país da gorjeta instituída.

Não piso solo gaulês desde 2000. Vontade não me falta, mas a vida é o que é e ainda não chegou a minha vez de viajar pelo vasto mundo a expensas do Orçamento de Estado. E a expensas próprias, a coisa está complicada. De qualquer modo, já podia ter ido a Paris neste interim.

Quando vou a Paris, faço sempre as minhas romagens de saudade. Procuro os sítios onde fui feliz: Montparnasse, onde havia uma “Taverne Alsacienne”, que tinha cave e uma máquina de discos, que tocava tardes inteiras e onde bebíamos cafés e dançávamos.

Que será feito do Gilberto Bandeira, da Maria Augusta, da Irene, do Manuel António Nunes, da Zaida, do Jorge Silva, da Lisete e da Marília? Será que ainda estarão todos entre nós? E que farão agora o João e a Jacinta Crisóstomo, se vivos ainda forem?

Vem-me à memória o Tony, que num dia de muito sol, no jardim do Luxembourg, teve o atrevimento de beijar uma turista, para espanto dela e de nós, os acompanhantes, apesar do ambiente libertário que ainda se vivia em Paris. Disse libertário e disse bem, porque libertina sempre a França foi, no remanso dos castelos e palácios. Rimos copiosamente e ainda hoje preservo nítido, na memória, esse dia.

Descíamos Saint Michel e acabávamos a comprar livros usados no Gilbert Jeune, que não tinha ainda a dimensão actual. Foi em frente deste livraria emblemática, que vi a polícia arrêter Simone de Beauvoir e outros “gauchistes”, num sábado à tarde, enquanto Sartre continuou a vender “La Cause du Peuple J’Accuse”.

Sartre, que poderia jogar na minha equipa de basquetebol, tinha uma enormíssima dimensão intelectual e tornara-se um símbolo da França. Era um dos intocáveis. Ele sabia-o e escarnecia das instituições.

E Montparnasse funcionou neste rememorar de tempos felizes como um mero anacoluto, para usar um termo da retórica.