domingo, dezembro 31, 2006

quinta-feira, dezembro 28, 2006

PATRIA -III

Os apátridas dos negócios prefiro
Aos lacaios dos apátridas,
Quando os segundos de governantes travestidos,
Impõem o tal respeitinho.

E de ti se riem, alarves e felizes, ó Pátria!

A LUXÚRIA

“Segui, ó gente mortal, o exemplo das deusas
e não negueis o prazer, que vos é natural, aos homens que vos desejam.
Mesmo que logo depois vos enganem, que perdeis? Tudo fica no seu lugar;
ainda que mil vos possuam, nem por isso alguma coisa se perde”.
Ovídio, Arte de amar, Livros Cotovia

“ Conhecera Teresa mais ou menos há três semanas numa cidadezinha da Boémia. Só tinham passado pouco mais de uma hora juntos. Ela acompanhara-o à estação e tinha esperado até ele entrar no comboio. Dez dias mais tarde, veio vê-lo a Praga. Fizeram amor logo no próprio dia da sua chegada”.
Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

“oh! que o não saiba ele ao menos, que não suspeite o estado em que vivo… este medo, estes contínuos terrores que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor. –Oh que amor, que felicidade…” (Madalena)
Garrett, Frei Luiz de Sousa


Por razões da minha vida pessoal não me foi possível consultar as obras necessárias para, acerca da luxúria, vos fornecer todo um manancial de citações, que ilustrariam melhor este tema do que as minhas palavras. Luxúria significa, como todos bem sabeis, sensualidade e libertinagem, nomeadamente. E é um dos sete pecados capitais.

Conheceis, certamente, a expressão “até os bichinhos gostam”. Tem mais uso junto do elemento masculino, mas concordareis que se trata de uma bela observação, que a vasta Natureza nos proporciona. E porque amar é tão natural como respirar, podem vir todas as doutrinas, podem chover catecismos, todos os conselhos, todas as bulas, que a força do desejo será sempre superior a todas as imposições de ordem moral e outras.

Pois “ se até os bichinhos gostam”… Façam todas as vontades ao corpo e ao espírito, no domínio da sexualidade. Sigam os sábios conselhos do imortal Ovídio. Aprendam e pratiquem a arte de amar. Na verdade, só amando lograrão atingir a felicidade. Mandem às malvas a temperança que os catecismos prescrevem! Mandem às urtigas todas as restantes virtudes, teológicas e cardinais, porque Deus perdoa sempre, e, nos tempos que correm, os virtuosos estão fora de moda.

Vou concluir com a sensação de que este pecado merecia um tratamento mais eficaz e desenvolvido. Deixo-vos, no entanto, um conselho: sejam pecadores metódicos; não se envergonhem de ser felizes; tornem as vossas vidas coloridas e interessantes.

terça-feira, dezembro 26, 2006

QUANDO (POEMA DE NATAL)

Prá Filipa, com amor.

Quando o teu choro inundou
o silêncio doloroso daquela noite longa

quando me apoderei da certeza
da perfeição desejada

quando...

quando meu amor
soube tudo
do pouco muito que queria saber
corri pelas ruas da cidade
como um cavalo sem freio
para repartir a alegria incontida
de ter dado vida à vida

e após respirar o ar
de Lisboa ainda adormecida
recostei-me no banco do automóvel
e deixei que os meus olhos vertessem
um lágrima comovida

Jan./81

IGREJA HIPÓCRITA

A Igreja Católica é, indiscutivelmente, a instituição mais antiga e estável de Portugal. E também aquela que mais influencia toda a vida da nossa sociedade. São-lhes reconhecidos e outorgados incontáveis privilégios.

Durante quase nove séculos, a Igreja Católica tem interferido na vida de Portugal, mais ou menos a seu bel-prazer, tomando sempre partido ao lado dos detentores do mando. Os períodos de menos influência confirmam apenas a regra. Daí que esta vetusta senhora se permita interferir na vida do país de forma intolerável. É agora o caso, em vésperas de um referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez.

A grande dama, que conhece como ninguém as engenharias de manipulação das almas, propaga aos sete ventos o seu apego à vida humana. E no entanto, não mexe uma palha para ajudar a resolver a pandemia que dizima as populações africanas e que dá pelo nome de HIV. Bastaria que, tolerante, aconselhasse o uso do preservativo.

A Igreja Católica, permanentemente alinhada ao lado dos segmentos mais conservadores da sociedade portuguesa – e quiçá minoritários -, ao imiscuir-se tão profunda e apaixonadamente na questão do aborto, desrespeita os defensores do sim e coloca-se em posição de ser desrespeitada. Está a badalar de mais.

Só quem respeita merece respeito!

domingo, dezembro 24, 2006

EM TEMPO DE NATAL

Sófocles escreveu: “grande maravilha é a Terra, mas maior maravilha é o Homem”. Se não for esta a frase pouco importa, porque importante, mil vezes mais importante que uma forma, neste caso particular, é o conteúdo da mensagem que se quer transmitir. Cito o autor de Antígona, porque é chegado o momento de mergulharmos de novo nas raízes da nossa decrépita e bem-amada Civilização Ocidental para, penso eu, renascermos imbuídos de um novo humanismo, que ponha um fim rápido a estas sociedades sem princípios, onde pontificam valores tão nobres como o lucro e o consumismo.

TORGA, OS DIÁRIOS E EU

Rabiscar notas, mesmo sob a forma de diário, não é tarefa fácil. Ainda que a escrita me esteja na massa do sangue, alinhar notas que suscitem interesse, numa prosa minimamente escorreita e ágil, repito, não é tarefa fácil. E há dias em que o vazio é total e o branco assusta. E no entanto, escrevo pelo prazer que a escrita me proporciona e não com a intenção de ganhar a vidinha. De resto, apenas um escrito me rendeu meia dúzia de patacos.

Concordo que um diário seja um espelho - um espelho muito peculiar - que há-de reflectir do autor a imagem desejada. Torga faz passar meia dúzia de ideias fortes: um homem na cidade, desenraizado, que procura no espaço primordial de S. Martinho de Anta a força para perseverar nos muitos desafios da vida; um homem dotado de uma grande firmeza de ânimo, à boa maneira dos estóicos, visível já nos textos escritos na prisão do Aljube, nos anos trinta; um homem solidário com os seus semelhantes e preocupado com a condição humana; um homem ousado, quando critica o Quixote de Cervantes; etc. Mas há outro Torga que se vai insinuando e que nada tem a ver com o caçador de S. Martinho de Anta: o artista que viaja e lê os autores mais significativos da literatura europeia (Ibérico por convicção, a sua Europa estende-se até aos Urais);o homem culto que é capaz de se pronunciar acerca de Rembrant e Beethoven. Ao fim e ao cabo, apesar de reivindicar persistentemente as suas raízes camponesas, lá bem no fundo, Torga não despreza um certo cosmopolitismo. E aqui encontramos, seguramente, uma das razões da sua candidatura ao Nobel.

Seja como for, não há que levar a mal que o autor de Os Bichos tenha as suas estratégias. É um direito que lhe assiste. Há que respeitá-lo enquanto homem e criador.

Retomando o fio à meada e para concluir, compartilho da ideia de que um diário, construído texto a texto, como quem constrói uma casa, é um acto criador como outro qualquer. Com a vantagem de o seu autor se despir perante os leitores, enquanto pessoa empírica, e não poder gozar de um estatuto idêntico ao do narrador que, no entender de Roland Barthes, “é um ser de papel”.

EM TEMPO DE NATAL (ORAÇÃO)

Dai saúde, Senhor, aos nossos bem-amados Chefes, para que nos possam guiar pelos Teus caminhos, nesta dura peregrinação que é a vida.

Protegei, Senhor, os nossos mui queridos Chefes, todos sem excepção, para que, mediadores entre a Luz e as trevas, nos possam iluminar os passos, nesta miseranda passagem pelo mundo.
Daí sabedoria, Senhor, aos nossos amantíssimos Chefes, também eles como nós pecadores, mas por Vós eleitos, para não nos deixarem pôr o pé em ramo verde, nesta lastimável passagem pelo reino das sombras.

Amai-os, Senhor, infinitamente, para que eles nos possam amar nesta difícil caminhada para a Glória, ou, no mínimo, para que não nos possam tramar.

Dai-lhes saúde, Senhor!
Protegei-os, Senhor!
Dai-lhes sabedoria, Senhor!
Amai-os infinitamente, Senhor!

Amai-os, Senhor, como eles nos amam.

EM TEMPO DE NATAL

Os santos que são santos também pecaram, diz o povo. E no entanto, quando se reencontraram com Deus (que cristão!), todos se sentaram à sua direita. Pecaram, com certeza, por pensamentos, palavras e obras e ter-se-ão arrependido contritamente, para merecerem a indulgência do Criador. E os homens tê-los-ão perdoado?

Um homem pode ter vivido a vida mais virtuosa das vidas, mas no dia em que cometer o mais insignificante deslize, os seus semelhantes constituir-se-ão em pelotão de fuzilamento. Em nome de Deus - mesmo sem procuração -, da justiça e da liberdade. O ensinamento profundo da parábola da adúltera, nunca entrará nas suas cabeças empedernidas.

PÁTRIA - II

Portugal é hoje um país de repteis. Não admira, assim, que a traição espreite a cada esquina. Os portugueses sempre foram mesquinhos e interesseiros. E nada dói tanto como a ausência de grandeza. Portugal começou a agonizar, com efeito, ainda na primeira metade do séc. XVI. Caminha para a dissolução final, inelutavelmente. E sobretudo, porque nunca mais soube encontrar alternativas credíveis e atempadas. Hoje, agarra-se e chupa a teta da mãe Europa com quantas forças tem. O pior virá, quando a teta, sugada até ao tutano, deixar de ser o almejado D. Sebastião.

Curiosamente, a religião nos fez grandes e pequenos. Com o mito de cruzada dominámos metade do mundo. A Inquisição castrou-nos para sempre.


sexta-feira, dezembro 22, 2006

AVAREZA

Se perguntarem a um avarento, por que nutre tanta apetência pela posse de bens materiais, antes de mais, negará a sua qualidade de avarento. Dirá que, ao contrário do que os outros pensam, é apenas uma pessoa previdente e contará ao seu interlocutor a conhecida fábula da cigarra e da formiga. E dirá que se sente bem na pele desses minúsculos e negros bichinhos que, de uma forma mecânica, executam metodicamente o vaivém entre o local onde se encontra a semente - ou seja lá o que for -. e o buraco-armazém.

Como é bom de ver, o avarento não é um contemplativo. Será mesmo incapaz de retirar prazer, de ordem estética ou outra, dos seus bens materiais. Não viu, decerto , “Casimiro e Carolina no teatro do Bairro Alto ou o “Círculo de Giz Caucasiano” no Teatro Aberto. Não frequenta salas de cinema, não aprecia pintura e escultura, não viaja. Em relação às coisas que enriquecem verdadeiramente um ser humano, o avarento é um homem não. E poderíamos ficar por aqui no que à avareza concerne, mas o retrato ficaria incompleto.

O avarento não cultiva a vida de relação. Vive ensimesmado. Prefere a conversa com os seus botões. Inventaria e actualiza permanentemente o valor dos seus bens. Tudo o que esteja para além do estritamente necessário é supérfluo. Quando compra botas novas aos filhos, recomenda-lhe que dêem passos largos. Gosta de ser convidado, mas quando toca a sua vez de pagar a conta, desafia os parceiros para jogar à moedinha. Vai aos arames quando lhe falam em férias. Cria galinhas na varanda de sua casa para poder vender ovos. É o único que não ri, quando lhe contam a nova versão da fábula da cigarra e da formiga, que aqui deixo reproduzida:

No pico do Inverno, a cigarra bate à porta da formiga e esta pergunta:
- Quem é?
- Sou eu, a cigarra.
- Que queres?
- Quero apenas falar contigo, formiga.
- Já conheço os teus truques desde que o mundo é mundo. Estou farta da tua música.
- Não sejas parva , formiga. Abre lá a porta!...
A formiga abriu o postigo e deparou com a cigarra toda anafada e de casaco de peles. È então que a cigarra diz:
- Vou para Paris. Vim despedir-me de ti.
- Estupefacta, a formiga replicou:
- Olha, cigarra, já que vais para Paris, se vires o La Fontaine, manda-o foder com a história da fábula.

Terão notado, com certeza, que me centrei apenas num tipo de avarento, ou seja, naquele que vive obcecado pelo dinheiro e pelos bens materiais. O discurso poderia, no entanto, ser dirigido noutras direcções. Poupemos, por hoje, os ambiciosos de todos os matizes e os mesquinhos.

A avareza, caríssimos alunos e colegas, é um pecado capital. Pratiquemos todos, todos sem excepção, a prodigalidade, tornando-nos dignos do senhor D. João V, o tal que, com o oiro do Brasil, mandou construir o convento de Mafra e passou à História com o cognome de “o Magnânimo”.

CANTIGA DO COITADO

Em Vigo
Perguntei às ondas:
- Sabeis Novas da minha amiga?
E as ondas me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Pontevedra
Perguntei aos barcos:
- Sabeis novas da minha amiga?
E os barcos me responderam:
- Um novo amigo tem!


Em Santiago
A Santiago perguntei:
-Sabeis novas da minha amiga?
E Santiago me respondeu:
- Um novo amigo tem!

Ferido no coração,
A Lisboa voltei
Mil vezes ouvindo:
- Um novo amigo tem!

- Um novo amigo tem!

quinta-feira, dezembro 21, 2006

PÁTRIA - I

Quando eu era menino e moço,
escrevia-se com "pê" maiúsculo
e dizia-se com muito respeitinho.

Inda ia da ocidental Europa até Timor.

Por ela se delapidava a fazenda,
por ela se ignorava o sofrimento,
por ela se morria estupidamente.

Os que morriam, obviamente.

ANTÓNIO OSÓRIO

Pró Daniel Abrunheiro,
com amizade.

Venturoso foi António,
Osório, de apelido.
Inda chorava no berço
E já tinha Camões lido.

Com um pai tão preparado
Prá arte de versejar,
As trovas de Luís Vaz
Eram canções de ninar.

Quem aprende assim no berço
Com tanta calma e rigor
Pensa e age, serenamente,
e o poema nasce sem dor.

terça-feira, dezembro 19, 2006

ACTUALIDADE

Santa Iria de Azóia, 17 de Janeiro de 2003 – Está na moda dizer mal da Função Pública. Diz o director do jornal e o patrão dos patrões, o homem do governo e o da oposição, o cidadão comum e o mais altamente colocado, o inteligente e o estúpido, etc. É a grande fraternidade para um regabofe de maldizer.

E os funcionários públicos merecem o chorrilho de disparates que sobre eles se vai dizendo e insinuando, porque, de um modo geral, os “opinantes” são uma cambada de ignorantes que não sabem fazer – ou não querem fazer a destrinça – das coisas. Os funcionários públicos são apenas os meros executantes, em muitos casos sem meios, do frenesim legislativo dos políticos governantes e do parlamento, cujo fito é controlar, controlar cada vez mais a vida dos cidadãos, para poderem controlar o poder – supostamente democrático – que exercem despudoradamente, ora mentindo, ora simulando falar a verdade.

Há, com certeza, muitos calaceiros na Função Pública. Há, com certeza, quem se aproveite da função para obter vantagens. Há, com certeza, muita gente que deveria estar algures, longe da coisa pública, para que as águas deixem de estar inquinadas. Há, com certeza! Mas há, igualmente, homens e mulheres honestos. Há, igualmente, centenas de milhar de pessoas que merecem respeito e consideração. Não me seria difícil contar aqui meia dúzia de situações que ilustram a desfaçatez de muitos dos tratantes da coisa pública.

O mito do privado é um mito e como todos os mitos, como dizia Pessoa, é o tudo que não é nada. Há bons e maus privados como há bons serviços públicos e bons servidores da coisa pública. Há muitos privados que, não fosse a política a miséria que é, estariam atrás das grades, porque são verdadeiros crápulas. A começar pelos que detêm os cordelinhos do mundo financeiro. Com a banca à cabeça, obviamente.

Esta onda de maledicência que varre a Função Pública esconde apenas culpas próprias de agentes vários, incapazes de alinhavar meia dúzia de ideias para reformar o que tem de ser reformado. Portugal é um país de pulhas e sacanas.


TINTO ARAGONÊS

Um bom tinto aragonês
Dá coragem e alegria.
Bebe tanto o português
E… é triste, quem diria?!


Dá coragem e alegria,
Na conta certa bebido.
Quem emborca em demasia
C’os burros é parecido.


Bebe tanto o português
Ao almoço e ao jantar,
Um copo de cada vez,
Aos golinhos, devagar.


E… é triste, quem diria?!
Quem bebe com devoção,
Deve sentir alegria.
Tristeza? Tristeza…Não!

NOITE DE LUA CHEIA

É noite de lua cheia,
Meu amor anda a rondar.
Já em mim o fogo ateia
E não o pode apagar.

Quem mo dera ter aqui
Para regar o braseiro.
Ai, amorzinho, eu, por ti,
Fugia para o Barreiro!

Ou outro sítio qualquer,
Que este fogo me devora.
A ti me quero render,
Vou sair daqui pra fora.

É noite de lua cheia
E de grande agitação.
Oh, tenho o mel na colmeia
Tão longe da tua mão!

segunda-feira, dezembro 18, 2006

REFLEXÃO

Não me venham falar da Pátria.
Não quero ouvir falar de pátrias
- nem desta, nem doutras -,
que as pátrias,
à semelhança dos deuses,
só sabem exigir sacrifícios,
desmedidos e vãos.
AS VELAS ARDEM ATÉ AO FIM, do autor Húngaro Sándor Márai, é um magnífico romance publicado pelas Edições Dom Quixote. A fábula poder-se-ia resumir como na badana do livro, mas a singularidade do romance, em minha opinião, reside no facto de, ente os capítulos 13 e 19, o narrador se eclipsar quase totalmente para que o velho general possa analisar a sua amizade com Konrád , o amigo de infância, que mais tarde o havia de trair mantendo uma relação secreta com Krisztina, sua mulher.

Konrád foge e vai viver no Extremo Oriente. Henrik permanece na sua floresta, onde espera, primeiro, na casa de caça, que Krisztina morra; e, depois, no palácio decadente, que Konrád regresse ao local do crime. A acção decorre, à boa maneira da tragédia grega, em menos de vinte e quatro horas, no velho Castelo e a intriga consiste em o velho general apurar se Konrád e Krisztina tinham gizado, em comum, o plano para o eliminar de um dos vértices do triângulo amoroso.

Durante quarenta e um anos e quarenta e três dias, o velho militar analisou todos os pormenores até à exaustão; tinha obtido a resposta para todas as questões; tinha dissipado todas as dúvidas; queria, agora, confrontar Konrád com as conclusões e, de certo modo, fazê-lo pagar, responsabilizá-lo, pela sua responsabilidade no destroçar das três vidas.

Tenho dúvidas que Konrád seja uma verdadeira personagem durante este jantar de acerto de contas. É antes de mais o pretexto para uma profunda reflexão sobre o sempiterno tema da amizade, onde Márai deixa passar a ideia de que comporta sempre uma «pitada de Eros». Henrik é o veículo para esse discurso que flui como um rio e onde as interrogações têm uma mera função retórica. O jantar é uma cena única e o discurso apenas a parte material de um admirável monólogo interior, entre o anoitecer de um dia e o amanhecer do dia seguinte.

O NATAL

Lisboa, 23 de Dezembro de 2002 – O Natal começa a tornar-se uma quadra aborrecida. Anda toda a gente num frenesim desenfreado, como se o mundo fosse a acabar: viagens, prendas, almoços, jantares, jantares, almoços, prendas e viagens. É a loucura quase total. Riem-se os comerciantes de tudo e mais alguma coisa e cantam os industriais da restauração. Esquecem-se por uns dias as carências quotidianas para se gastar o que se não tem.

Na minha infância o Natal era diferente: minha mãe fazia filhoses, cantava-se o menino Jesus à roda dos madeiros e ia-se à missa do galo. No dia de Natal estreava-se uma camisola ou uma camisinha e brinquedos não havia. É verdade que a quadra não transpirava esta fraternidade actual, mas era, quanto a mim, muito mais autêntica.

D. Quixote eclipsou-se e quem manda agora é Sancho Pança. Temos de esperar que volte D. Quixote, para que a quadra reganhe o seu simbolismo e alegrias tradicionais. Esta fraternidade cheira-me a uma coisa que não vou nomear. Ou se insistem nomeio. Hipocrisia! Arranjinhos de comerciantes e quejandos para desgraçarem as nossas bolsas.

Aqui ficam três quadras da minha infância, que todos cantávamos do Natal até aos Reis:

Ó meu menino Jesus,
Ó meu menino tão belo,
Logo vieste nascer,
Na noite do caramelo!

Eu fui dar ‘ma volta ao adro
O madeiro está arder,
O presépio está armado
E o Menino por nascer.

Lá vai a barca bela,
Que a fizeram os pastores,
Nossa Senhora vai nela,
Toda coberta de flores.