terça-feira, dezembro 28, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 27 de Dezembro de 2010 - No próximo ano, se nada de extraordinário acontecer, deixarei de ser funcionário público. Deixarei de ser funcionário, sem qualquer mágoa, de uma empresa falida. Tropa incluída, sairei com mais de trinta e oito anos de serviço e cerca de três de penalização, ou seja, com a chamada pensão de aposentação reduzida em cerca de 18%. Para gáudio da dr.ª Ferreira Leite, que, vaticino eu, um dia ainda terá de se haver com algum funcionário público mais ousado ou tresloucado.

No próximo ano vou deixar de ser um activo a comer do OE para passar a ser um aposentado a comer do OE, com todos os descontos legais efectuados, e a caminhar inexoravelmente para os sessenta anos. Bem sei que não sou velho no sentido actual da palavra. Velhos, para além dos trapos, são aqueles que conseguem entregar a alma ao criador já depois dos noventa. Vistas bem as coisas, eu ainda podia fazer umas peladinhas com as velhas glórias. No entanto, estou farto. Farto!

É certo que nunca gostei de ser funcionário público. Gostaria de ter sido professor a tempo inteiro e de ter estudado e produzido trabalho intelectual com interesse. Nunca tratados de economia ou artiguinhos sobre economia ou ciência económica. Mas podia ter estudado poetas e romancistas e, devagarinho e de forma mais atenta, ter tratado da minha própria produção. No fundo, e tendo em conta o pensamento dominante, podia ter feito umas tretas.

A vida é o que é - o senhor De La Palisse não diria melhor - e não vou ficar para aqui a lamentar-me. Vou deixar a função pública e com a convicção de que não fico a dever nada à dr.ª Ferreira Leite. E isto é para mim um consolo muito grande.


8 comentários:

albano matos disse...

Manuel:não lamentes o teu estado (presente ou futuro), como a Nise do Guerra Junqueiro. Há mais mundos e mais vidas para lá do orçamento (este, o da Ferreira Leite e todos os orçamentos dos burocratas que nos juram a salvação da pátria e da alma a cada instante, enquanto tratam de afundar uma e outra um pouco mais). Mesmo que sejas agora um funcionário já cansado de funcionar (como no poema do Ramos Rosa), há mais vida entre o céu e a terra do que a que cabe na cabeça desses burrocratas.
Bom ano e bons versos, Manuel.

albano matos disse...

Desculpa: a Nise é obviamente do Bocage, não do Guerra Junqueiro

Manuel da Mata disse...

Caro Albano,
Não sei se leste um outro texto, no qual falo do poema de Ramos Rosa.
Concordo contigo. Há mais vida para além deste e de outros orçamentos.
Um bom ano para ti e bons artigos.Abraço.

Manuel da Mata disse...

Albano,
Há dias lembrei-me de um amigo nosso, o Manel Ciborro. Sabes alguma coisa dele?
O Apolinário apareceu aqui há alguns meses.
Abraço.

Morais disse...

Viva Manel,

Bom Ano Novo, com menos azedume, mesmo que justificado. Lembra-te que da lagarta/funcionário pode, e deve, sair uma borboleta poeta.
Abre (mais) as asas.

Um Abraço para ti, e também para o Albano de que me lembro e nada sei há muitos anos.

Morais

Manuel da Mata disse...

Caro ZÉ Manel,

Para mim és o Zé Manel, porque te conto no rol dos meus amigos. De há muitos anos a esta parte.
Não, meu amigo, não saio com azedume. Saio com alegria, ainda que pudesse ficar mais algum tempo.Mas tinha que escrever este texto, para ficar a bem comigo mesmo.
Abraço e bom ano para vós também.

PS - Vou falando com o Albano por aqui e através do correio.

Balas e Bolinhos disse...

Pois é pois é, o meu amigo deveria ter deixado o funcionalismo público à mais tempo, não há nada pior do que fazermos aquilo de que não gostamos, com a agravante de ter que o fazer 5 dias por semana, mas com certeza que não teve essa oportunidade de se dedicar a outras artes....

Manuel da Mata disse...

Balas e Bolinhos,

Ainda ensinei português durante 16 anos, num colégio de Lisboa, em horário pós-laboral. Também fui escrevendo, ainda que sem o rigor que a escrita exige.
O "Meu Diário" foi iniciado em 1993.E também escrevi alguns versos. Tudo podia ter sido diferente, na verdade.
Eugénio de Andrade foi funcionário da Caixa de Previdência até se reformar (nada de comparações, obviamente)