sexta-feira, agosto 11, 2006

O cavaleiro da Águia (continuação)

Em nome de Deus e de Allah, mouros e cristãos combatem-se ferozmente. E no entanto, olham uns para os outros e a miscigenação acontece. Uns e outros sentem mútua atracção, que a beleza e as razões do coração são facilmente separáveis do fanatismo religioso. E aí temos Afonso VI casado c0m uma irmã de Buthayna e esta casada com Gonçalo Mendes. Ainda que o casamento de Gonçalo Mendes com Buthayna pertença ao mundo da ficção - então não é simplesmente maravilhoso ver o nosso Gonçalo Mendes casado com uma filha do poeta de Silves e rei de Sevilha al-Mutâmid?-, sabe-se que nas zonas conquistadas os vencedores se misturavam com os vencidos e que o sangue se cruzou, muito mais até do que muita gente supõe.
Este romance dá destaque, em minha opinião, a duas questões fundamentais: a luta mais ou menos permanente pelo poder e pelo espaço para o seu exercício, que é visível entre as filhas de Afonso VI, Urraca e Tareja, e entre Urraca e Afonso de Aragão, com quem chega a casar por razões de natureza estritamente políticas; e o fanatismo religioso, talvez mais visível do lado mouro, que foi durante séculos a causa de ódios inenarráveis e de mortandades sem conta. Este último continua, estupidamente, nos tempos que correm, a provocar morticínios, um pouco por todo o mundo.
Este romance de Fernando Campos poder-se-á ler numa perspectiva actualizante. Os problemas da idade média permanecem mais ou menos os mesmos. Outros são certamente os actores. Porém, as lutas pelo poder e pelo espaço para o seu exercício, bem como o fanatismo religioso, este do lado muçulmano, aí estão, no seu esplendor, para nos mostrar que a natureza humana permanece mais ou menos imutável. E tudo podia ser diferente, porque Deus e Allah são apenas formas diferentes de nomear a mesma divindade.
Uma última palavra para este antigo professor de língua portuguesa. Através de uma criteriosa escolha das palavras, recria para os seus leitores a época da Reconquista e da fundação do reino de Portugal, com uma mestria verdadeiramente espantosa. O que significa que para além do saber acumulado ao longo de uma vida, o autor de A Esmeralda Partida continua a trabalhar incansavelmente. Exemplar!

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