quarta-feira, agosto 23, 2006

A HERANÇA DE ESZTER

Foi através do padre Manuel de Aguiar, antigo professor de português no liceu Pedro Nunes e homem de vasta cultura e erudição, que conheci o escritor húngaro Sándor Márai, quando me presenteou com o romance As velas ardem até ao fim. Li a obra com uma volúpia adolescente e sobre a mesma produzi um pequeno texto, que consta do meu diário ainda inédito.
Há dias encontrei A Herança de Eszter, do mesmo autor, que comprei imediatamente e que voltei a ler com a tal volúpia adolescente. Trata-se de um romance muito belo, publicado na colecção Ficção Universal da Dom Quixote, traduzido do húngaro pelo "magister" Ernesto Rodrigues. E com a menção na capa, pouco ingénua mas muito feliz: do autor de As velas ardem até ao fim.
Em ambos os romances, num dado momento, alguém pretende resolver, de forma definitiva, questões que ficaram pendentes durante décadas. Há boa maneira dos trágicos gregos, Sándor Márai usa a denominada lei das três unidades, isto é, as unidades de tempo, espaço e acção. E no caso concreto d' A herança de Eszter, nem sequer falta o coro, a cargo de Laci, Tibor e Endre. Neste último romance, Eszter aceita passivamente, contra a vontade de Endre, as "imposições chantagistas" de Lajos, considerando-o "o único e verdadeiro sentido" da sua vida (pág.49). Mais: Eszter, na noite que antecede a chegada anunciada de Lajos - e após a conversa acerca do anel falso que este lhe dera após a morte de Vilma, como sendo a jóia mais preciosa da família -, diz: "Pensava que, sem ainda ter chegado, Lajos já me roubara qualquer coisa. Pelos vistos, não pode ser de outra maneira. Esta é a lei. A sua lei" (pág. 29). As duas citações configuram, em minha opinião, que Eszter aceita Lajos como o próprio e inexorável destino.
Em traços largos, a história poder-se-ia resumir assim: Lajos, estudante universitário, é trazido para o seio da família de Eszter pelo irmão desta, Laci. Lajos, que a todos seduz através da palavra, modifica os hábitos de uma família humilde de província. Transforma a casa da família de Eszter numa espécie de palco para as suas exibições mundanas. Namora Eszter, mas acaba por casar com a sua irmã Vilma, da qual tem dois filhos. Lajos escreve cartas a Eszter para se explicar, porém Vilma intercepta-as e aquela só agora, vinte anos depois, saberá toda a verdade (o destino a fazer das suas). Vilma morre e pouco tempo depois Eszter regressa a casa, deixando os sobrinhos e Lajos numa cidade distante. A vida de Eszter decorre tranquilamente, após um período inicial de grandes dificuldades, na companhia de uma parente, Nunu. E com Laci, Tibor e Endre por perto. Vinte anos depois, num sábado dos finais de Setembro, Lajos anuncia que vai regressar, no dia seguinte. Convoca Endre, o notário, e fá-lo preparar o documento legal que tirará a Eszter e a Nunu a própria habitação.
Este pequeno grande livro de Sándor Márai, cuja história é comovente, tem a particularidade de, através da análise dos sentimentos de Eszter, indubitavelmente contraditórios, mostrar como o amor pode conduzir a atitudes perfeitamente irracionais. No final do romance, o leitor, tal como Eszter, dificilmente odiará Lajos, apesar de o poder considerar um requintado "sacana".

1 comentário:

Manuel da Mata disse...

É só para experimentar.