sexta-feira, julho 04, 2008

DO MEU DIÁRIO

Lisboa, 13 de Maio de 1994 - Em 1972, quando vim frequentar o 1º ano do Instituto Comercial de Lisboa – e já depois de ter vivido vinte e um meses em Paris -, sentia um enorme prazer em caminhar a pé pelas ruas da cidade. Sentia, nesse tempo, uma vergonha muito grande por conhecer melhor Paris do que Lisboa. Estabeleci roteiros, que cumpria religiosamente, e mantive este interesse muito vivo durante meses.

Vi o Tejo do Alto de Santa Catarina, já sem os grandes paquetes de outrora, e reflecti muito acerca da guerra colonial. Porque nunca dissociei o Tejo, ao qual Garrett chamara o Nilo Português, das nossas venturas e desventuras colectivas. Calcorreei as ruas e ruelas dos bairros pobres, nomeadamente as do Bairro Alto, onde tomei contacto com uma humanidade outra, carregada de amarguras e sordidez. Frequentei cafés e outros lugares públicos, que era usual serem frequentados por figuras maiores da nossa literatura.

Recordo-me de, num sábado à tardinha, quase ao anoitecer, ter entrado com o Albano Melo Matos no Martinho da Arcada e de ter perguntado ao empregado pelo senhor Pessoa. Respondeu-me correctamente que ainda o não tinha visto naquele dia. Horas depois ainda nos ríamos a bandeiras despregadas, por entre copos de cerveja. Persegui José Gomes Ferreira, no Chiado, na mira de meia dúzia de palavrinhas. O Poeta Militante gozava, então, de uma popularidade imensa entre a juventude. Os seus poemas eram recitados à mesa do café e funcionavam como senha e santo para desancar no regime e nos esbirros que o serviam. Os poemas do “Diário dos Dias Cruéis” (Poesia II) exerceram sobre mim um enorme fascínio.

Relativamente a Gomes Ferreira, quero aqui lavrar o meu protesto pelo ostracismo a que as novas gerações o têm condenado. Nomeadamente, os doutos professores de literatura que fazem crítica e poemas e se elogiam mutuamente, num ritual indecoroso. Porque Gomes Ferreira, que atravessou o séc. XX, de pé e como homem livre, voz original e solidária da poesia portuguesa, não merecia uma tal injustiça. As suas metáforas e imagens, profundamente ligadas ao quotidiano do seu povo, são, porventura, das mais arrojadas do século.

Lisboa era ainda uma cidade convivente. Os amigos encontravam-se com frequência nos cafés, para dois dedos de conversa e uns copinhos de cerveja. É dessa cidade, ferida por uma guerra colonial imbecil e espiada nas suas esperanças mais legítimas, que guardo as melhores recordações. Embora seja impensável, mesmo em tese, voltar a viver esses dias de chumbo.

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