sábado, junho 26, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 26 de Junho de 2010 – A União Cultura e Acção (UCA), colectividade de cultura e recreio de Santa Iria de Azóia, ressuscitou graças ao trabalho da Gabriela, do Leandro, da Ana Maria e de outras pessoas, que, generosamente, a eles se foram juntando.

A ideia de ressurreição foi introduzida por José Morais, advogado, que conheci ainda estudante liceal no já longínquo ano de 1972. Convivemos muito naquele ano lectivo de 1972/73 e temo-nos encontrado por aí ao acaso, mantendo ambos o gosto pelos livros e pelos grandes autores. Na UCA nos encontrámos ontem e de livros e autores falámos, como não poderia deixar de ser.
Feito este parêntesis para justificar a ideia de ressurreição da UCA, chegou o momento de dizer que fiquei surpreendido com os números que ouvi, relativamente às inscrições nas diversas disciplinas ensinadas na “instituiçãozinha”. Dir-se-ia que se conjugam ali, exemplarmente, os verbos aprender e ensinar. E depois de uma forma quase informal, sem ninguém falar de cátedra e com muito carinho.
Ora aqui está uma iniciativa com muito mérito, que deverá ser apoiada pela sociedade civil e pelas entidades oficiais – e creio que o tem sido -, permitindo-lhe o crescimento que os “refundadores” pretendem.

sexta-feira, junho 25, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 24 de Junho de 2010 – As polémicas à volta de Saramago ganharam uma nova vida com a sua morte. Afinal de contas, muitos cristãos deste pobre reino aproveitaram o momento para um novo, que não será certamente último, ajuste de contas com o autor de Levantado do Chão.

Falaram do dinheiro gasto com o avião, dos dois dias de luto nacional e do autor ter defendido em tempos uma União Ibérica e também por ter ido residir para Lanzarote. Um tal Lara, que não pertence à estirpe dos sete infantes com o mesmo apelido, voltou a não manifestar qualquer arrependimento pelo uso do lápis azul, aquando da exclusão de Saramago de um prémio europeu; um tal Cavaco, que nunca terá dado nada de seu ao país, recusou-se a comparecer nas cerimónias fúnebres oficiais, apesar de dizer frequentemente que sabe muito bem quais são os seus deveres; o Osservatore Romano, misericordioso, escreveu uma série de disparates acerca do homem e da obra.

Todos estes episódios, quer queiramos quer não, demonstram que Portugal vive em permanente guerra civil. O Portugal ultramontano, incapaz de se regenerar, estulto e videirinho, não conseguiu pôr de parte guerrinhas estéreis e homenagear condignamente o autor de O MEMORIAL DO CONVENTO, O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA. Não soube, em suma, estar à altura de um gigante nacional, que tão alto e longe levou o nome do seu país.

sábado, junho 19, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 19 de Junho de 2010 – A Igreja Católica não perdoa e não desperdiça as oportunidades para atacar quem, mesmo que nunca a tenha directamente afrontado, não se coibiu de nos dar a sua visão da vida e do mundo. Nomeadamente, no plano religioso.

A Igreja Católica, que qualquer um de nós considera uma sábia instituição, demonstrou hoje, relativamente a José Saramago, um fanatismo digno dos seus pergaminhos passados e que julgávamos já ultrapassados.

A Igreja que hoje emitiu opinião acerca da obra de José Saramago, no órgão oficial do Vaticano, demonstrou não só um fervoroso fanatismo, mas também uma grosseira apreciação da obra de Saramago.
Um dia mais tarde, daqui a muitos anos, há-de vir, com o atraso do costume, pedir desculpas públicas. O que nos vai valendo é que esta Igreja Católica já não tem os poderes de outrora, o que livra Saramago de um auto de fé post mortem.

sexta-feira, junho 18, 2010

DO MEU DIÁRIO


Santa Iria de Azóia, 18 de Junho de 2010 – Soube do desaparecimento de Saramago, há cerca de uma hora, num serviço de finanças. E através de um leitor de Saramago que, teve a coragem de me dizer, não apreciava como pessoa. Lá aproveitei para dizer que não era importante gostar-se de Saramago como pessoa, porque importante era o seu legado literário.

Cheguei a casa e o meu filho, que hoje fora a Mafra para visitar o convento, disse-me imediatamente que até parecia ironia ter ido a visitar o convento por causa do Memorial e o nosso Saramago ter morrido. O possessivo é dele, mas é evidente que também é meu, porque sou velho leitor de Saramago e previ no início dos anos noventa, neste já longo Diário, a atribuição do Nobel ao autor de Levantado do Chão.

A obra de José Saramago, a quem o meu amigo Fernando Grade chamava José de Sousa, ficará a perdurar, múltipla, pelo tempo fora, nomeadamente a romanesca, porque escreveu, no mínimo três ou quatro grandes romances, a saber e pela ordem das minhas preferências: Levantado do Chão, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis.

Neste nota mais ou menos de circunstância, quero aqui deixar o nome de algumas das personagens de Saramago, que são a garantia de que vai vencer o esquecimento durante muitos anos: João Mau Tempo, Blimunda, Baltazar, Cipriano e Marta Algor, Marcenda, Lídia, Ricardo Reis, etc.

Quanto a Saramago cidadão, diga-se aqui e para que conste que soube estar ao lado daqueles que mais necessitavam das suas posições corajosas. Os Chiapas e os palestinos perderam hoje um amigo de peso.

quinta-feira, junho 17, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 17 de Junho de 2010 – As crises, confesso, não me estimulam a pena. Para dizer a verdade, passo agora dias e dias sem escrever uma linha. Dir-se-ia que gosto mais de assistir ao debitar voluptuoso de outros escribas, muitos dos quais debitam disparates à velocidade da luz.

Os defensores de Sócrates esgrimem argumentos e mais argumentos, caninos muitos, mas que esbarram diariamente nas paredes espessas e consistentes da realidade. Sócrates é apenas, no momento que passa, o cabo que vai cumprindo as ordens dos donos de Bruxelas, Berlim e Paris, que, por sua vez, andam ao toque de caixa das chamadas agências de notação financeira.

O dr. Coelho vai dando os seus passos como dirigente, ora associando-se ao eng. Sócrates, ora dissociando-se do eng. Sócrates, convencido que um dia vai, e provavelmente vai, ser o cabo de serviço. Porém, o dr. Coelho não tem nada de diferente a propor ao país e por isso diz que não tem pressa de chegar ao poder. Acredita que este lhe cairá no regaço por obra e graça de uma profunda crise que não se sabe bem quando e como acabará.
O que eu sei de ciência segura é que a Europa vive hoje a sua maior crise do pós-guerra, porque os europeus, laxistas, entregaram o governo dos respectivos países, os do Sul e também os do Centro, aos inimigos ideológicos do seu modelo de sociedade. A dona Merkel, o senhor Sarkozy e o senhor Berlusconi (?), são apenas alguns dos exemplos que me ocorrem. E andamos para aqui todos a fazer de conta, que nem baratas tontas, que a crise tinha que acontecer, porque os estados gastam mais do que deviam.

quarta-feira, junho 16, 2010

TRÍPTICO PARA VAN GOGH

I

Subitamente,
no auge da devoção,
recebeu do céu
divina inspiração.

Desenfreado,
de paleta na mão,
desatou a pintar
ao ritmo do coração.

Sóis,
ciprestes
miosótis
e girassóis.

II

Do fundo da mina
- qual vagabundo -,
trouxe as cores
com que iluminou o mundo.

E no entanto
- moderno Prometeu -,
o pobre do Vincent
nem uma tela vendeu.

III

E um dia,
quando o voo rasante dos corvos
se tornou ameaçador,
fitou o cocuruto dos ciprestes
e entregou a alma ao Criador.

Barata, Manuel, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, Lx, 2005

sábado, junho 12, 2010

ANTÓNIO NOBRE
Às vezes, dou por mim agarrado ao Só de António Nobre e sinto uma imensa tristeza. Eu sei que parte daquele sofrimento é fingido, porque todos os poetas são fingidores. Mas usa uma máscara tão autêntica, tão dramaticamente convincente, que a tristeza de Anto me esfarrapa todo por dentro.

Às vezes, ponho-me a imaginar António Nobre, sozinho, nas ruas de Paris, rememorando a igreja de Leça, o mártir S. Sebastião, o Senhor de Matosinhos... Eu imagino Anto, naquele ambiente moderno e cosmopolita, corroído de saudades dos manéis, do mar, de barcos, de fanfarras, eiras, pescadores, camponeses, arraiais.

Às vezes, agarrado àqueles versos que até parecem conversa fiada, pelos meus olhos perpassa um Portugal beato, atrasado e rural. Que permanece, cem anos depois de Nobre, apesar de tudo, tremendamente real.

sexta-feira, junho 11, 2010

QUANDO O SOL...

Quando, ó sol, te levantas lentamente
Das cristalinas águas do Tejo,
A cidade pressinto tão contente,
Recebendo teus raios como um beijo!


Sem o oiro dos teus raios a cidade
Fica mole, cinzenta, entristecida.
Com Londres parecida, já de idade,
Perde a graça de moça divertida.


Eu tenho preferência p’los dias
De sol doirado e quente. Com calor
A vida é bela e plena de alegrias.


E se perto de mim, ó meu amor,
Te tivesse, decerto, amar-me ias!
Na cidade do sol, da luz, da cor...



quinta-feira, junho 10, 2010

A PASSAGEM DO TEMPO

A vida é um momento tão fugaz,
Mesmo quando se vivem muitos anos...
Imparável a roda roda e traz
Alguns deleites, dores, desenganos.


Os que vivem, contentes e felizes,
Passando pela terra sorridentes,
indo no carril certo, sem deslizes,
Deste mundo estiveram sempre ausentes.


A vida é desafio permanente,
Mil batalhas travadas com ardor,
Com um só fim em mente, ó minha gente,


Tornar este planeta mais decente!
Árduas lutas travo por amor
E sei que tudo passa... fugazmente!


segunda-feira, junho 07, 2010

JUNHO

Nas manhãs de Junho,
Quando o sol tudo doirava,
A nossa casa era também
A sombra da oliveira
Do outro lado da rua.

Guardo memória, mãe!,
Da nossa rua térrea
E vejo-te jovem
Algodão dobando
À sombra da oliveira
Do outro lado da rua.

Nas manhãs de Junho,
Quando o trigo amadurecia
E eu brincava, brincava
À sombra da oliveira
Do outro lado da rua.

Fazia-te mil perguntas
- Mil ou muitas mais – ,
E tu respondias sem enfado
À sombra da oliveira
Do outro lado da rua.

E eu era feliz
E tu eras feliz, mãe!
À sombra da oliveira
Do outro lado da rua.

Do outro lado da rua
À sombra da oliveira.

Manuel Barata, Fragmentária Mente. ed. Alecrim, 2009.






quinta-feira, junho 03, 2010


DOM SEBASTIÃO

Dom Sebastião permanece vivo
E inda mexe no luso imaginário.
Um povo vive, nesta orla, cativo,
À ´spera do rei louco e temerário.


Os outros fazem e nós esperamos,
Que ele nos traga a boa solução.
Para o cerrado nevoeiro olhamos,
como se fora a nossa salvação.

Ai, esta longa e dolorosa espera!...
Agir, agir, agir sempre e sem medo,
Foi a regra mágica da nossa Era,


O nosso mágico e fértil segredo.
Quem viu o largo mundo desespera,
Com este povinho tristonho e quedo.





terça-feira, junho 01, 2010

PEQUENO CANCIONEIRO DE LISBOA

TENTATIVA

Canção de amores vadios
- Vai de barco é marinheiro -,
Não enjeita desafios,
Dá volta ao mundo inteiro.

Em Lisboa junto ao Tejo,
Tem o fado sua morada,
Um afago, um desejo,
Uma rixa anunciada.

Fado velho sempre novo,
Alma vera deste povo.

Canta amores traídos,
Ausências, amizades,
Em versos muito sentidos
E repletos de saudades.


Onde um tintinho houver
É cantado à desgarrada.
Na presença da mulher
É canção civilizada.

Fado velho sempre novo,
Alma vera deste povo

LISBOA – I

Lisboa gosta de Farra,
Festeja todos os santos.
É como a leda cigarra,
Não vai com choros e prantos.

Com ar triste canta o fado
- Faz parte da convenção –
Bebe um tinto, passa ao lado
E lá se vai a paixão.

Velha Lisboa querida,
Sempre leal e valente,
Sempre audaz e destemida
E ilustre resistente.


Nas curvas mais apertadas,
Faz das tripas coração.
Vence! Águas passadas,
Volta à sua vocação.

Ora séria matrona,
Ora mocinha garrida,
Tratada por tu ou dona,
É alegre e divertida.

LISBOA – II

Um tal Fernando Pessoa,
Que não era pensador,
Pensava por aí à toa,
Com ironia e rigor.

Travestido de Caeiro,
Ah, tinha tanta piada!...
Era alegre e galhofeiro,
Fingia não pensar nada.

Quando de reis se vestia,
Era Horácio em pessoa.
As coisas que ele dizia,
Velho romano em Lisboa.

Ah!, sempre tão sonolento,
Cansado… Campos dizia,
Com tristeza e desalento,
Que da vida nada qu’ria.

Pessoa só não sabia
Amar Ofeliazinha:
Por isso, tanto escrevia…
Ela?! Pobre tiazinha…

LISBOA –III

Descer a Guerra Junqueiro,
De manhãzinha, em Agosto.
É bom. Não custa dinheiro
E deixa-me bem disposto.

Como Cesário vejo
As feridas da cidade;
E não raro sinto pejo
De tanto luxo e vaidade.

Eu lembro-me do poeta
Pelas ruas a caminhar.
Trazia sempre a paleta
Para Lisboa pintar.

Era poeta e pintor,
Amigo da populaça
Cesário!... Um senhor
Tão sensível à desgraça.

Tinha aquela mania
De passear por Lisboa…
Quadros e fotos fazia,
Com palavras, numa boa.

Manuel Barata, QUADRAS QUASE POPULARES, Ulmeiro, Lx. 2003



LISBOA


Ter Lisboa nos meus braços,
Apertada contra o peito.
Saber-lhe as curvas e traços,
Possuí-la com respeito.

Queria dar-te mil beijos,
Oh, minha rosa encarnada!
Mas são tantos os desejos,
Que mil beijos não é nada.

Tuas pétalas osculo
Com ânsia desvairada.
É assim este Catulo
Oh, minha rosa adorada!

Lisboa tem mil encantos,
Mas o Tejo é o maior.
De tantos feitos e prantos
Foste Tejo o causador.


Lisboa tem mil segredos
E mil lendas por narrar.
Nobre cidade sem medos,
Que os poetas sabem cantar.

As colinas de Lisboa
São todas muito famosas.
Nelas vive gente boa,
Raparigas tão vistosas!

Eu nunca senti enfado
Ao cantar esta cidade,
Que o mundo tem deslumbrado
Com cantigas de saudade.

Manuel Barata, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, Lx., 2005



LISBOA - 1

Há nas ruas de Lisboa
Uma graça, um encanto,
Que nelas inda ressoa
Um pregão em cada canto.

O cauteleiro teimoso
Inda persiste, coitado!
Deixou o grito ruidoso,
Vende o jogo sem enfado.

Galhofeiras, as varinas
Têm tanta, tanta graça!
Suas línguas viperinas
São a pimenta da praça.

Eu sinto tanta saudade
Dos ardinas barulhosos.
Coloriam a cidade
Com seus pregões saborosos!...

À tardinha, no Rossio,
- Oh, era bonito de ver!
Os ardinas, em desvario,
Apregoar e a correr.

Mudou tanto esta cidade!
Marcas do tempo imparável,
Causam-me tanta saudade...
Oh, mudança inexorável!

Do pitoresco a saudade,
Que do resto nem pensar!
Nada paga a liberdade
Que o povo pode gozar.

Mas tudo o que permanece,
Genuíno e popular,
Minha alma tanto enternece,
Meu coração faz pulsar.



LISBOA - 2

A nobre Lisboa tem
O vasto Tejo a seus pés
‘ma porta aberta ao vaivém
Rumoroso das marés.


Este Tejo que o Poeta
Morada das musas quis,
Foi a companhia certa
Deste pequeno país.

Cais de partida e chegada,
Quantos segredos ouviu?
Nunca quis revelar nada
Das muitas coisas que viu.

Companheiro e confidente,
Nas horas boas e más,
Esteve sempre presente,
Discreto, calmo, sagaz.

Manuel Barata, FRAGMENTÁRIA MENTE, Ed. Alecrim, 2009.