domingo, janeiro 18, 2009

DO TEMPO QUE PASSA

TEXTO I
Estou a ficar cansado - não do débito e crédito rosiano -, mas das alíneas, dos números e dos artigos das leis e dos decretos-leis, produzidos por juristas preclaros, e também dos números das circulares e dos ofícios-circulados, através dos quais os directores –gerais, debitam para o vulgar o que se deve entender que entenderam, repito, os preclaros juristas.

Não sou um funcionário triste nem alegre, porque a um funcionário não se pede nem se paga para ser triste ou alegre. Um funcionário é um funcionário, despido de adjectivos, como diria o sempre delicioso Caeiro. Cansado, sim, que a leitura e a exegese das alíneas, dos números e dos artigos das leis e dos decretos-leis, absorvem e ocupam um espaço desmesurado na minha mente.

Objectivamente, sou um funcionário cansado. E estranho que só agora me ocorra este cansaço, quando passei muitas tardes de domingo a olhar o Tejo e os bandos de aves em viagem e eu fui ficando, sem coragem para mandar às malvas as alíneas, os números e os artigos das leis e dos decretos-leis e ir com as aves.


TEXTO II

Agora, indiferentes ao meu cansaço, vêm filhos de mães de moral imaculada, cujos avós – e quiçá os pais –, abancaram à manjedoura do orçamento, donde provavelmente roubaram para dar às filhas e a esses netos, dizer-me que estou a mais; que sou um inqualificável parasita; que não mereço o pão que como.

A esses bondosos cidadãos, que vão enriquecendo sabe-se lá como e encaixam as crias nos melhores empregos, usando os apelidos dos seus compridos nomes; a esses bondosos cidadãos, que vão fintando as leis para que haja pão e leite e carne e peixe, com abundância, nas suas avantajadas mesas; a esses bondosos cidadãos, que tudo esmifram para aconchegarem mais ainda as suas já farfalhudas contas bancárias, respondo com a veemência do costume: a puta que os pariu!


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