terça-feira, janeiro 23, 2007

A MENTIRA

Desde que me conheço que oiço dizer que a mentira é uma coisa muito feia. A minha mãe dizia-me amiúde: “ se mentires, meto-te uma malagueta na boca.” Meu pai resolvia o problema de forma mais expedita: abria-me os seus olhos imensos e ameaçava-me com um puxão de orelhas. O método de meu pai era mais eficaz, porque soluçava logo a verdade e com juras de que diria futuramente sempre e só a verdade. Era um homem muito severo e que sempre respeitei muito. Eram outros os tempos e atribuía-se à verdade uma enorme importância.

Na origem dos mitos, encontramos sempre uma mentira piedosa. É sabido que Jesus Cristo nunca esteve em Portugal e muito menos para se relacionar com Afonso Henriques; porém, pôs-se a circular aquela narrativa mais ou menos maravilhosa e todos sabemos que se tornou o mito mais produtivo da História de Portugal. Sem esta mentira piedosa, que imediatamente virou mito, nunca teríamos sido o que fomos e o que somos. Por força do mito de Ourique combatemos o mouro e fomos à Índia, levando a cabo uma das façanhas maiores da Civilização Ocidental: os Descobrimentos marítimos. O mito, que é o tudo e o nada como diria Fernando António, fez de nós gente grande e ousada.

Saindo desta deriva, talvez ilegítima de relacionar a mentira e o mito, e colocando-nos no plano estrito da mentira, teremos de concordar que esta é largamente praticada pelos portugueses, independentemente da religião professada, da classe social, do credo político, da idade e do sexo. Dir-se-ia que os portugueses são inatamente pulhas. “Sou pulha e quero morrer portuguesmente pulha”, terá escrito Jorge de Sena. E chegados aqui, compreender-se-á melhor a nossa vocação para o “desenrascanço”, para o safe-se quem puder.

Poderia, sem grande esforço de imaginação, fazer-vos corar de vergonha. Mas não o farei, porque não foi esse o propósito que aqui nos trouxe. No entanto, meio a sério meio a brincar, sempre vos direi que mentimos por amor e por ódio, por vaidade e por modéstia, como pais e como filhos, como trabalhadores e patrões, na nossa relação com Deus e com o Diabo, e, não raramente, como cidadãos. Mentimos muitas vezes com vergonha de revelarmos os nossos comportamentos, sobretudo quando agimos à margem da chamada gramática social.

Tendo em conta que todos mentimos, velhos e novos, homens e mulheres, é minha firme convicção que a mentira não é um pecado – para alguns será mesmo um modo de vida –; ou então, teremos de enquadrar a mentira no número dos nossos pecados menores, perdoados quotidianamente por Deus, sob pena das nossas existências se tornarem infelizes e atormentadas. E como a vida dos portugueses, na sua esmagadora maioria, é uma pulhice pegada, durmamos todos descansadinhos e não nos preocupemos com este não-pecado.

5 comentários:

José Antunes Ribeiro disse...

Manel,

Eis que me confesso uma vez mais "pecador"...Espero não ser o único!...

papu disse...

Manuel

A verdade, a mentira...

a mentira, a verdade...

"Sê ao menos a tua verdade, mesmo sendo a maior mentira aos olhos do mundo"

(isto escrevi eu, para aí com 18 anos... e acho que continua actual)

Manuel da Mata disse...

Papu,
Eu escrevo e penso pelo puro prazer de pensar e escrever.
O texto é de 93 do século passado. Reescrevi-o e coloquei-o neste pequeno grande escaparate, com uma finalidade lúdica. Nomeadamente, para me ir rindo com o meu amigo Zé Ribeiro.
Se outros o puderem ler na mesma perspectiva, tanto melhor.
Boa saúde!

papu disse...

Manuel,

ui...
parece que fui mal interpretada...
ou será que não?

isto é engraçado, realmente as coisas que escrevemos podem ter tantas leituras, tantas as pessoas que nos lêem, ou a forma como lêem, não sei bem...

o que eu escrevi, também no século passado, por coincidência, tem precisamente a ver (a meu ver) com isto da relatividade da verdade e da mentira: que a "minha verdade" pode não ser a "tua" (e do resto do mundo) e que a "tua" pode não ser a "minha". E como não há uma verdade, mas sim muitas (a de cada um) é essa (a de cada um) a mais válida. Mesmo sendo uma grande mentira (para quem está de fora, ou não). E podia ficar para aqui a fazer mais derivações, que nunca mais acabava...

Enfim, uma trapalhada! ;)

Haja saúde, humor e boa disposição! E prazer em ler e em escrever, e em partilhar, sempre!

Bom fim de semana.

Manuel da Mata disse...

Papu,
Não, papu.Eu não sou de meias medidas. Só achei que deveria explicitar melhor as coisas. E nomeadamente, que tudo faço sem perder de "olho" o carácter lúdico das coisas.
Se eu fosse detentor de verdades...Bom, que faria eu?
Boa saúde e votos de um domingo feliz.