MATA
UM FALAR PECULIAR
NOTA PRÉVIA
As ideias arrastam-se, às vezes, e levam imenso tempo a concretizar. Serve isto para dizer, que andava há anos para levar a cabo este trabalho, que executei com muito prazer e que deve ser visto apenas como uma dádiva ao generoso povo da Mata. Deu-me o empurrão definitivo o livrinho LADOEIRO: UM FALAR (A)TÍPICO, de Catarina Lourenço.
Provavelmente, só eu estava em condições de executar um trabalho desta natureza. Devido à formação académica e por possuir dos bens materiais o desprendimento dos poetas.
Prescindi de informantes por duas razões: não se trata de um trabalho académico e considero-me um lídimo representante da Mata que, já o escrevi e publiquei, considero a minha pátria primeira. Admito que podia fazer mais e melhor; porém, reclamo já para este meu trabalho um carácter pioneiro, e, passe a modéstia, de referência.
Agradeço à minha mãe as precisões que me sugeriu e à Filipa, minha filha, o relembrar de palavras e expressões e as transcrições fonéticas, que muito enriquecem este trabalho. Agradeço também à Zélia, minha afilhada, algumas “dicas” e o modo como me incentivou, logo que soube deste meu projecto.
As páginas do MEU DIÁRIO - ainda inédito -, saem tal como foram escritas, isto é, sem quaisquer arranjos de conveniência. São textos eminentemente subjectivos, mas que testemunham de uma forma inequívoca aquilo que penso e sinto da terra onde nasci e vivi a infância e parte da adolescência.
LOCALIZAÇÃO
A Mata é uma das vinte e cinco freguesias do concelho de Castelo Branco e fica situada a NE do mesmo e da cidade que lhe dá o nome. É vizinha dos Escalos de Baixo e da Lousa, que a limitam a S, O e NO e NO e N, respectivamente. A ribeira de Alpreade e o rio Ponsul, constituem as suas fronteiras a NE, E e a SE.
Os terrenos que confinam com os Escalos de Baixo e a Lousa são arenosos e foram, desde sempre destinados à vinha e aos eucaliptos. A pobreza dos terrenos e a estrutura da propriedade, nem uma economia de subsistência permitiam. As oliveiras tinham ali vida dura e representavam, de certo modo, a teimosia do Homem da Mata. O granito, sem qualidade, nunca foi explorado. De resto, vê-se a olho nu, que o xisto – a pedra “pserra”-, ganhou preponderância em relação ao granito.
À medida que se roda em direcção à ribeira de Alpreade, as terras barrentas e o xisto vão modificando a paisagem. É à volta da ribeira e do Ponsul e do planalto contíguo, que se encontra o verdadeiro rosto da Mata, isto é, a pujante oliveira que, em “tempos de servidão”, aliviou o mal-estar e a fome das sucessivas gerações de matenses, até meados dos anos sessenta do século passado.
UMA FORMA PECULIAR DE FALAR
Era meu desejo, de há muitos anos a esta parte, contribuir, na medida das minhas possibilidades e competências, para a preservação das palavras de um peculiar falar que aprendi na infância. Foram as palavras que reuni e defini, neste pequeno trabalho, algumas das primeiras que utilizei, quer nas conversas familiares, quer com os rapazes e raparigas com quem brinquei, nas ruas da Mata.
Com a aprendizagem da leitura e da escrita, já depois dos sete anos de idade, terei constatado - como outros terão constatado antes -, que havia diferenças intrigantes entre o falar normal da população e o que se aprendia na escola. Refiro-me a aspectos fonéticos e também a questões lexicais. A aprendizagem de novas palavras – significantes e significados -, não ponha em causa as aquisições linguísticas anteriores. É evidente que continuei a utilizar vocábulos como acajadar, amolengado, angarela, assedento, etc.; e que, ainda hoje, os continuo a utilizar, para me fazer entender perante a comunidade, nomeadamente, entre as pessoas mais idosas. E creio que preservei até mais tarde a africada /tch/ em palavras como charco e chave, que não é específica do falar da Mata. Esta africada é comum às variedades de português faladas na Beira Interior e Trás-os-Montes e Alto Douro. O uso persistente desta africada /tch/ é que já me parece um caso notável de longevidade, se se considerar a homogeneização conseguida através dos meios de comunicação social, vulgo, medea.
Outra questão fonética interessante prende-se com a pronúncia da palavra manhã, que na Mata se pronunciava e ainda há quem pronuncie manhem. A locução adverbial temporal amanhã de manhã pronunciava-se e ainda há quem pronuncie amanhem de manhem.
No que às questões lexicais concerne, tem havido uma evolução natural, que decorre da chamada democratização do ensino e também de uma maior mobilidade da generalidade das pessoas. Porém, a Mata continua a ser a localidade onde se vai propositadamente, como me fez notar e bem o poeta José do Carmo Francisco, apesar de, na actualidade, uma estrada estreitíssima a ligar também à Lousa.
O isolamento secular foi parcialmente rompido a partir de meados da década de sessenta do séc. XX, quando os homens e depois as mulheres começaram a emigrar para França e permitiram aos filhos o acesso ao liceu e às escolas técnicas. Os matenses que emigraram, esses constituíram pequenas comunidades fechadas, nos arredores de Paris e continuaram a falar como sempre falaram, acrescentando ao seu léxico do português inúmeras corruptelas do francês, nomeadamente. Os mais idosos, que criaram os netos, estranhavam o «falar à fina» dos mais novos, mas já eram demasiado idosos para aprenderem «línguas», confirmando o ditado.
Na actualidade, a Mata tem uma população muito envelhecida e escassa. Ao contrário do que acontece com outras localidades do concelho de Castelo Branco, não é procurada sequer para segunda habitação. Da Mata foge-se a sete pernas para a sede do distrito e para outras regiões do país. Não espanta, por isso, que entre os idosos mais idosos, se possam encontrar os traços distintivos de uma forma muito peculiar de falar, quer a nível fonético, quer a nível do léxico.
GLOSSÁRIO
Acajadar, v.t. guardar, proteger.
Acincho, s. m. utensílio em folha metálica utilizado para o fabrico do queijo tradicional. Com furos em toda a volta, nele se desfazia e comprimia a coalhada. O queijo permanecia dentro do achincho até ganhar consistência. O mesmo que cincho.
Aguamento, s. m. doença contraída pelas crianças de tenra idade, quando desejavam algo que viam e não obtinham para comer. Curava-se através de mezinhas caseiras. Diz-se na Mata e noutras regiões do país.
Alamar – s. m. diz-se de uma coisa sem Importância. Também se utiliza em relação às pessoas.
Amolengado, adj. adoentado.
Angarela, s. f. utensílio em ferro que, colocado sobre uma albarda, permite o transporte de cântaros de água ou de outro líquido qualquer, no dorso de muares e burros.
Apalamado adj. adoentado.
Aprisco, s. m. sítio junto ao bardo, por onde passavam as ovelhas para a ordenha.
Arincu, s.m. pirilampo; diz-se de uma pessoa sem habilidade, para a resolução de uma tarefa, num dado momento.
Arrela, s. f. território minúsculo, desenhado no solo, para jogar determinados jogos. Arremedar, v.t. imitar, repetir o que alguém diz; “fazer pouco”.
Arrenegar, v. int. negar.
Arrezoado, s. m. boato, conversa em voz baixa; zunzum;
Arrezoar, v. int. dizer em voz baixa, murmurar..
Asadinho, adj. o mesmo que jeitosinho.
Asado, s.m .recipiente de barro com a forma de grande bilha, mas sem asas; adj. Jeitoso;
Assedento, s. m. mau olhado.
Azinagre, s. m. líquido produzido no processo de moagem da azeitona, nos lagares. De cor escura, era um poluente natural e sazonal dos ribeiros; água-russa.
Baldão, s. m. diz-se de um homem que não encara a vida a sério, sem mérito e desleixado.
Banquinha s. f. mesa de cabeceira, com um espaço protegido com uma porta, onde se guardava o bacio.
Borrega, s. f. bolha provocada nos pés pelo calçado ou nas mãos por utensílios que não se utilizam com frequência.
Balho, s. m. local onde se baila e/ou o próprio acto de bailar.
Balho-ao-comprido, s. m. dança tipicamente matense (vide texto deste livro)
Balhar, v. int. bailar; v. trans. Bailar o fandango.
Borrachão, s.m. espécie de biscoito, em cuja confecção entra uma quantidade apreciável de aguardente.
Borregana, adj. cordeirinho, pessoa dócil e incapaz de fazer mal a alguém.
Botar, v. t. verter. Ex. Bota aí vinho no copo.
Braçado s. m. a quantidade de lenha ou palha que se leva debaixo do braço; porção
de erva ou de outro vegetal que se dá a comer aos animais.
Brusco adj. Nublado.
Burra, s f. picota. Serve para tirar a água dos poços.
Cacheirada, s. f. pancada; cajadada; arrochada.
Cacheiro, s.m. cajado.
Caço, s. m. utensílio de uso doméstico, mais fundo do que uma frigideira, mas
mais pequeno.Dotado de um cabo para segurar, enquanto se aquece água ou se
confeccionam alguns alimentos. Já não se usa.
Cagarrapo s. m. frito obtido a partir da massa da farinheira.
caibro, s. m. barrotes de madeira, onde se pregam ripas.
Cancelão s. m. portão; grande cancela.
Canchal s. m. pedra grande, que se atira a alguém.
Canhenha, adj. Emprega-se para qualificar uma pessoa física e intelectualmente
pouco capaz.
Cãozoada, s. f. muitos cães, matilha; em sentido figurativo: os poderosos
que mordiscam os pequenos.
Casar, v. int. fazer amor.
Cenave, s. f. a viga principal de um telhado de duas águas. Toro de eucalipto ou
de pinheiro.
chabouco, s.m. charco (o ch é africada. Lê-se «tch»
Chambaril, dispositivo em madeira ou em ferro, em forma de v, com uma argola
no vértice ranhuras para encaixar os tendões dos porcos, a fim de poderem
arrefecer e secar.
Champlantana s. m. pessoa sem maneiras; homem grosseiro.
Chapuço, s.m. indivíduo grosseiro; sem maneiras.
Chicalarica, s.f. excremento, fezes, merda.
Choço, s. m. espécie de cabana, de forma piramidal, feita de madeira leve e colmo,
onde dormiam os pastores.
Churra, adj. Espécie de ovelha, cuja lã se assemelha ao pelo das cabras.
Cobrão, s. m. doença da pele. Caracteriza-se pelo aparecimento de borbulhas
que vão alastrando, tornando-se perigosa quando se junta “o rabo com a cabeça”.
na Mata, curava-se com uma reza e um unguento de mel e cinza de alho.
comediante , adj. diz-se de uma pessoa que gosta de divertir os outros, quer
através de ditos, quer através de gestos.
Conana, s. f., o mesmo que simplório
Concha, s. f. macaco do nariz.
Conchela, s. f. propriedade pequena e com pouco valor.
Corna, s. f. segmento de um corno de vaca, munido de duas tampas de cortiça, onde
Se acondicionavam os condutos (queijo, toucinho, etc.) que se lavavam para o campo.
Correia s. f. cinto de homem.
Coucho s. m. utensílio de cortiça, que se colocava junto das fontes e dos poços, para
quem quisesse beber água. Parecido com a concha da das mãos, mas com
maior profundidade.
Criadilha s. f. míscaro. Desenvolve-se de baixo da terra e apresenta um
aspecto rugoso. Quando descascada tem cor branca e come-se com ovos.
Crujar, chuviscos fracos.
Crujeiro, chuva molha-tolos.
Desorelhado, s. m. papeira.
Embalde s. m. diz-se de pessoa que não presta, nem para comer.
Enfatulhar v. t. enfatulhar estacas. Colocar palha à volta de futuras oliveiras, com
a finalidade de não serem roídas pelos animais.
Entrego s. m. designação da parte nova da Mata, i. é, a parte situada a norte da
igreja matriz.
Entrudo s. m. é a quadra que começa a seguir aos Reis e termina na terça-feira
de Carnaval; Carnaval.
Chama-se Entrudo a um indivíduo com dotes histriónicos e também a uma
representação popular de uma qualquer situação risível que a comunidade conhece.
Escaleiro s. m. habitante dos Escalos de Baixo.
Estanfonar, v. t. gastar à toa; esbanjar; derreter uma fortuna.
Fandango s. m. é um tipo de dança local. Diz-se de algo sem qualquer ordem
ou autoridade.
Farronca, s. f. bazófia, jactância, fanfarronice.
Fega, s. f. conjunto de homens e mulheres que colhem e apanham azeitona por
conta de outrem.
Ferra, s. f. pá de zinco com que se apanha a cinza.
Ferrada, s. f. recipiente para onde se ordenham as ovelhas e as cabras.
Fito, s.m. jogar ao fito; jogar à malha; jogar ao chinquilho.
Fogaça, s.f. presente dado aos noivos pelos convidados, no dia do casamento.
Fogueiro s. m. pau alto, de forma arredondada, que se coloca nos carros de bois
para suster a carga (lenha, palha, feno e até sacos).
Forro, s. m. cobertura em madeira, que separa as divisões da casa do telhado. É
o sótão. No forro guardavam-se batatas, cebolas e outras coisas da casa.
Foucém s. m. pequena foice para cortar aveia ou erva para os animais.
Francela s. f. peça em madeira, com quatro pés, em cuja parte superior se faz o queijo
artesanal e onde permanece para escorrer.
Fúcia s. f. cara, rosto.
Furda s. f. pocilga. Diz-se de uma casa onde não há cuidados de higiene.
FUSCAR v. t. mascarrar as raparigas com massa de lubrificação, no dia de Carnaval.
Sujar-se com carvão, etc.
Gacho, s.m. uva (é uma corruptela de cacho).
Garrancho, s.m. o mesmo que ancinho.
Guarda-vestidos, s. m. roupeiro.
Gravanço, s. m. grão-de-bico ( por influência do cast. gravanzo)
Ibeido, s. m. natural do Ladoeiro.
jogar ao fito, jogar ao chinquilho
Judeu, adj. travesso, brincalhão. Aquele que gosta de pregar partidas.
Labajo, s.m. espécie de agrião que cresce nos cursos de água. É comestível.
Laburdo, s. m. o mesmo que suventre.
Lambisca, s. m. estalada, estalo, bofetada,levar uma lostra.
Lamira s. f. bofetada, estalo.
limbino, adj guloso.
Lincheira, s f. a parte visível de uma grande pedra de granito.
Linda, s. f. linha de separação entre duas propriedades.
Lostra, estalada, estalo,
Maçãzeira, s. f. macieira.
Machio, s. m. que não dá fruto ou que não se reproduz. Diz-se do fruto de casca
que não tem miolo.
Malhar, v. t. significa partir. Ex. malhar a carne.
Malho, s. f. machado.
mané-zé, s. m. simplório, pobre diabo.
Marafulho, s. m. orn. pardal.
marrancho, porco que está a meio do seu processo de crescimento.
Margadeira, s.f. romãzeira
margueida, s. f. romã.
Marraninho, s. m. porco já crescido, mas ainda não apto para a matança.
Marrano, s. m. porco; pessoa sem hábitos de higiene.
Melgo, s. m. o mesmo que gémeo.
Melias adj. uniforme. homem, mulher ou criança magros e com
pouco apetite. Usa-se sempre no plural.
Mostrunço, s.m. alguém com maus modos; grosseiro.
Músico, s. m. espertalhão. Diz-se daquele que se arma aos cucos.
Nenho, adj. Diz-se de alguém incapaz de executar determinadas tarefas, que
exigem esforço
Pachacho, s. m. simplório. No feminino, usa-se o diminutivo. A forma do feminino
é usada para designar, em calão, o sexo da mulher. O diminutivo pachachinho
é muito e sobretudo pelas mulheres.
Passeira, s. f. diz-se de uma construção em madeira e coberta com palha de centeio,
onde se colocavam os figos para secar
pelheira s. f. reservatório contíguo à lareira e cavado na própria parede da casa,
onde se guardava a cinza.
Pelice, s. f. sobrepeliz.
Pexilgo, s. m. pêssego
Pexilgueiro, s. m. pessegueiro.
Pichorro s. m. púcaro em barro. Pequeno jarro que se utilizava nas tabernas.
Pindrica s. f. órgão sexual da criança do sexo masculino.
Poucachinho, adj. é um diminutivo de pouco; simplório; alcançado de inteligência.
Pserra, s. f. tipo de rocha (xisto).
Respigo, s. m. um bocado de um cacho de uvas.
Retólica, s. f. o mesmo que retórica; conversa fiada.
Rodilha s.f. pano de cozinha, que serve para limpar loiça e /ou as mãos; artefacto
doméstico, de ourelos, de forma arredondada, que serve para colocar na cabeça para
transportar cântaros, cestos e outras coisas.
Rolho, s. m. jogo tradicional. Cada jogador coloca uma moeda num pino
minúsculo. Seguidamente e por ordem, cada jogador tenta derrubar o rolho com
um pataco. Até final, cada qual tenta colocar o seu pataco o mais próximo
possível das moedas. Ganha aquelas que estiverem mais próximas do pataco e
mais afastadas do rolho.
Sagorro, adj indivíduo rústico e que não se sabe apresentar.
Salta-pserras, s. m. queijo bastante duro. Usa-se sempre no plural.
Samarra, s.f. pele. Tirar a samarra ao coelho ou ao cabrito.
Santorinho, s.m. pão por Deus.
Santórum, s. m. pão por Deus.
Sardinha- do- ar, s.f. o mesmo que bofetada, estalo, pancada.
Sarrabulho,s. m. o mesmo que laburdo e suventre.
soquilho, s. m. espécie de biscoito com a forma de um s.
Sortes s. f. ir às sortes significava e/ou significa ir à inspecção militar.
Suventre, s. m. guisado de toucinho da barriga e do fígado porco, ao qual
era adicionado sangue do mesmo, previamente cozido, e que era desfeito
à mão. Levava rodelas de laranja e era um dos pratos da matança.
Talefe s. m. espécie de marco, de forma piramidal, que delimitava a área de
uma freguesia.
talheco s. m. adega particular e de pequenas dimensões.
Taloca s. f. toca, lura, buraco, cavidade.
Tanoco s. m. pequeno pau. Usava-se com mais frequência o diminutivo.
testelo,s. m. tarefa que consiste em apanhar a azeitona que cai espontaneamente. A
azeitona apanhada antes da colheita.
Travia s. f. no processo de fabrico artesanal do queijo, escorre um líquido branco,
o soro, que, depois de fervido coalha novamente. É a travia, que se come com ou
sem açúcar.
Trogalheiro, s.m. pessoa divertida e amiga de paródia
Trogalho, s. m. brincalhão.
Trombilo s. m. forma popular e pejorativa de nomear o rosto de alguém.
Zarroco s. m. pedra mais ou menos grande.
Zarrocada s. f. pedrada.
EXPRESSÕES
Andar ao baguinho – apanhar azeitona depois da colheita efectuada. Era tarefa
de mulher. A azeitona assim apanhada, em propriedade alheia, era posteriormente moída ou vendida. Era uma actividade importante para a economia doméstica.
Andar ao ganho – A expressão tem um carácter pejorativo. Andar na má vida.
cagar de alto, significa estar na mó de cima; estar numa posição vantajosa.
Cagató senhora avó – ora toma; quem diria…; ora aí tens!
Comer ar e vento – Não comer nada.
Estar quedo – estar quieto.
Ir cagar de um carro abaixo – vai-te “lixar”; vai chatear outro; vai dar uma volta.
Levar caminho – não singrar; estragar-se.
músico do Retaxo, a expressão tem o significado de músico.
Sardinha do ar, comer estalos, comer pancada.
Ser um cagalhão de Outono – Significa que algo não cresceu o suficiente. Os fru-
tos serôdios, por exemplo.
Ser um chapuço de Idanha – Não ter maneiras; ser grosseiro.
Ser um comediante – Ter dotes histriónicos; ser divertido e gostar de divertir.
Ser um conana mansa – Ser simples e incapaz de grandes voos.
Ser um entrudo das baraças – Ser divertido e gostar de divertir.
Ser um justo – não ter maldade; ser cordato e crédulo.
AS ALCUNHAS
Como o prefixo “al” muito bem indica, a palavra é de origem árabe e significa sobrenome. À partida, dir-se-ia que uma alcunha teria sempre a ver com uma característica específica de uma família, quer de origem moral ou física, quer de origem comportamental. No entanto, no que às alcunhas das famílias da Mata concerne, é nossa convicção que nasceram de geração espontânea e que só num caso ou outro funcionou a regra geral. Todas de origem obscura, aqui fica um rol apreciável delas, pela ordem que me ocorreram: ceroulas, malato, caga-dinheiro, xi-xi, mangas, mexe, careca, sanfarro, japona, doutor, galego, redondo, mal-casado, picha-torta, grilo, catramona, cagão fatela, escangalhado, borracheiro, gazula, pão-trigo, ninho, boucha, castanha, passarinha, rameco, masseiras, baiucas, catita, sapateiro, xé-xé, cantigas, barbosa, caçolas, peluda, cadeiras, chouriço, estapi, chisco, bimbas, mina, batata, barrigana, carchano, moucho, cabaço, capelão, farinheira, raposo, rambóia, chacho, côdeas, pechirra, xila, cheira, estafa, cabeçudo, caixote, caixeirinho, borralha, gaitas, canuna, parranço, cagado, marraninha, chapoa, patanisco, bufas, etc.
É evidente que todas estas antonomásias, associadas ao nome próprio de um indivíduo, permitem, pela força do hábito e pelo seu carácter individualizante, uma mais rápida identificação. Tenderão a ser esquecidas e registam-se neste trabalho para que as gerações vindouras saibam mais acerca da sua terra ou da terra dos seus antepassados. Muitas têm o seu quê de pitoresco e de escatológico, tornando-se tão peculiares como as palavras acima recenseadas e que constituem a razão de ser deste trabalho.
A MATA DA MINHA INFÂNCIA
1. TRANSPORTES
Até meados dos anos sessenta do século passado, o meio de transporte utilizado para se ir à sede do concelho, Castelo Branco, era a carroça. Recordo-me muito bem de haver na Mata vários operadores na área dos transportes – passe a ironia -, ou seja, aquilo a que poderíamos chamar os táxis das segundas-feiras, sem qualquer tipo de conforto, sem qualquer tipo de protecção! A carreira Castelo Branco – Rosmaninhal passava no Mata 3, isto é, no sítio onde a estrada camarária entroncava na E.N. 240, mas a três quilómetros e mais cara. Os meus conterrâneos mais velhos, entre os quais incluo os meus pais, mantiveram - e ainda mantêm - uma relação especial com o dinheiro. Tendo conhecido a pobreza, olharam sempre para as «notitas» com muito respeito e aprenderam a gastá-las com parcimónia.
2. OCUPAÇÕES PROFISSIONAIS
No fim dos anos cinquenta, a Mata era uma terra de pedreiros e de trabalhadores rurais. Dito de outra forma: era uma terra de operários e de servos da gleba.
Os operários tinham bicicleta e trabalhavam em Castelo Branco, Alcains, Escalos de Cima, Ladoeiro, etc. A semana tinha seis dias. O domingo de manhã era aproveitado para consertar a bicicleta e para dar uma ajuda nas hortas que, por norma, eram tratadas pelas mulheres. De tarde, os homens saíam de casa para dar uma volta pela povoação e beber vinho em todas as tabernas. Recordo-me da Mata ter onze tabernas a funcionar, simultaneamente.
A vida dos trabalhadores rurais era ainda mais dura e pior remunerada. Eram jornaleiros de grandes e médios proprietários rurais, que viviam da exploração da mão-de-obra barata. Os chamados remediados davam meia dúzia de dias de trabalho por ano e por vezes eram quase tão miseráveis como os assalariados.
As mulheres tratavam dos filhos (?) e trabalhavam no campo. Deslocavam-se a pé, percorrendo por vezes vários quilómetros. Ganhavam cerca de metade do salário dos homens e vinham para casa, depois do sol-posto, para tratar da ceia e das tarefas da casa.
3. PRODUÇÃO AGRÍCOLA E INDUSTRIAL
No fundo, quase toda a actividade económica da Mata gravitava à volta da oliveira. A colheita iniciava-se nos princípios de Novembro e durava, muitos anos, até quase ao fim de Janeiro. De seguida, fazia-se a limpeza, a lavra, a abertura de covas e a plantação de estacas. A colocação de palha à volta dos toros das estacas era feita por mulheres. Estas também se ocupavam do arranque e queima do mato. A fertilização dos solos fazia-se através dos rebanhos. Por vezes, o mato era traçado e enterrado junto aos toros das oliveiras. Havia proprietários que compravam lixos urbanos, que eram espalhados nas suas propriedades. Quando se semeava nos próprios olivais, utilizava-se então os fertilizantes artificiais.
Na denominada folha da Mata, não havia muitos terrenos para searas. De qualquer modo, semeava-se trigo, milho e algum feijão-frade. A vinha também não abundava. As maiores eram as da D. Antónia e o «Mateussobrinho». As restantes eram exíguas parcelas de terreno, de pequenos proprietários, que produziam o vinho para a família.
Na minha infância, chegaram a funcionar quatro lagares: o da família Melo, o da tia Floriana, o do Vaz Preto e o do Tomé. Estas pequenas unidades fabris chegavam a funcionar entre meados de Novembro e finais de Fevereiro, nos anos de boas colheitas. Na actualidade, a Mata não tem um lagar sequer!
Os salários eram miseráveis; porém, como as pessoas tinham necessidade de ganhar algum dinheiro, não cultivavam os seus próprios terrenos. Hoje, causa-me impressão o facto de, há cinquenta anos, não se plantarem árvores de fruto com abundância. Plantava-se uma árvore aqui e outra acolá, sem qualquer critério. O único povoamento criterioso era o da oliveira sobretudo nas propriedades dos ricos. As famílias, por vezes, tinham terras e poços, mas como trabalhavam de sol a sol, compravam os legumes que consumiam. Dir-se-ia que a miséria começava na própria imaginação.
Só no segundo lustro da década de sessenta é que se alterou este estado de coisas.
4. O CASAMENTO
Combinado o casamento, entre os nubentes e os pais, sempre na casa da noiva, dão-se os passos indispensáveis para a celebração do mesmo. E como só se celebravam casamentos católicos, o pároco da freguesia procedia à sua divulgação, durante três domingos consecutivos, no final da missa. Eram os chamados pregões.
No domingo do primeiro pregão, os noivos convidavam os seus amigos e os pais os familiares mais chegados para o casamento e a respectiva boda. O alargamento dos convites - e a celebração de casamentos com centenas de convidados -, só se viria a verificar com o dinheiro abundante provindo da emigração.
No domingo seguinte, também conhecido pelo domingo dos tremoços, os noivos recebiam os amigos – sempre em casa da noiva -, ofertando-lhes vinho, tremoços e água do asado. Eram festinhas simples que, observadas à distância de cinquenta anos, têm o condão de comover os que as viveram ou de parecerem inverosímeis aos mais novos.
Nas semanas seguintes, a noiva e a família mais chegada, a mãe e as irmãs, ultimavam o enxoval e preparavam a casa, onde a nova família iria residir. O noivo continuava a sua actividade habitual.
A semana do casamento era a de todas as dores de cabeça. Faziam-se os doces, as papas de milho e o arroz-doce para oferecer aos vizinhos que não eram convidados. Na sexta-feira matavam-se os carneiros e as ovelhas e as galinhas, que haviam de proporcionar a confecção de diversos pratos. Dos ovinos tudo era aproveitado! Até das tripas se fazia um arroz, com sabor a hortelã, e que era muito apreciado. A fressura era igualmente aproveitada Guisava-se carneiro com batatas e de carneiro assado no forno a lenha eram servidas fatias, acompanhadas de batata frita. A sobremesa era constituída por papas de milho e arroz-doce. Falo, obviamente, da refeição mais importante do dia do casamento, o jantar, porque a boda começava com o jantar de sexta-feira e só terminava, para a família, com o jantar de domingo. Mais tarde, quando as posses já eram mais, este festival de comida estendeu-se a todos os convidados.
Como é fácil de apreender, o peixe estava ausente, assim como a fruta e outras sobremesas triviais, nos nossos dias. Com excepção da sopa, tudo era comido do mesmo prato e o talher era constituído por uma colher e um garfo. As refeições eram confeccionadas e servidas pelos familiares dos noivos, sob a orientação de uma cozinheira contratada para o efeito.
Apesar desta simplicidade, o dia do casamento era alegre e os convidados divertiam-se. Durante o jantar, havia despiques de poesia popular, ouvindo-se coisas do género:
Aqui vai este copo de vinho,
Que leva um ramo de laranjeira.
Vivam todos os presentes
E também a cozinheira.
Aqui vai este copo de vinho,
No meio, leva um ramo de goivos.
Vivam todos os que estão
E especialmente os noivos.
O baile, animado por um acordeonista local ou contratado numa terra da região, servia para continuar o divertimento. O vinho, não raramente, provocava algumas zaragatas. Alziro Galante, natural de Orca, no concelho do Fundão, foi o mais famoso de todos os acordeonistas que tocaram na Mata.
5. HABITAÇÃO
Tirando as casas dos ricos e as de alguns remediados, as restantes eram quase todas de rés-do-chão. As divisões eram pequenas e desconfortáveis. Obedeciam quase sempre ao mesmo tipo de planta: uma porta de entrada e um corredor, no início deste uma porta que dava acesso a uma salinha e esta dava acesso a dois quartos, um destinado ao casal e o outro aos filhos e/ou às filhas. Quando havia filhos de sexos diferentes, as irmãs dormiam no mesmo quarto e na mesma cama e os irmãos compartilhavam uma cama no chamado forro, que era assim como que uma espécie de sótão, onde se guardavam os mais diversos tarecos familiares. Perto do telhado, de Verão e de Inverno, no concelho de Castelo Branco. Ao fundo do referido corredor uma cozinha, que era também a sala de jantar e uma outra divisão que servia de despensa e onde se amassava o pão. Quando as casas tinham quintal, na cozinha havia uma porta de acesso ao mesmo. O mobiliário, quase inexistente, era rudimentar e escassíssimo. Numa casa de muitos filhos, estes sentavam-se junto ao lume e recebiam das mãos da mãe a malga da sopa e a fatia de pão com conduto, se o houvesse. Mesas largas e altas e fartas e cadeiras para todos, só mais tarde fizeram o seu aparecimento.
6. SANEAMENTO BÁSICO
A água canalizada e a rede de esgotos são um luxo do princípio dos anos setenta. O calcetamento das ruas da Mata nova, o chamado Entrego, já foi feito depois da revolução de Abril.
O abastecimento de água era feito a partir de um chafariz que gotejava no Verão e onde os Melo colocavam inúmeros cântaros – na Mata diz-se cântara -,açambarcando uma quantidade de água muito significativa quotidianamente. Para regar os vasos da enorme varanda, também. Durante os meses de Verão, caminhava-se de noite e de dia para o chafariz, afim de se obter o precioso líquido. Muitas pessoas mendigavam cântaros de água aos proprietários de poços e transportavam-na à cabeça, percorrendo quilómetros, por vezes.
Contar-se-iam pelos dedos de uma só mão, as casas que possuíam uma casa de banho. As necessidades fisiológicas eram feitas nos quintais e nos descampados. O papel higiénico era desconhecido. Na escola primária, que estava dotada de sanitas e lavatórios, só os professores desfrutavam da comodidade da civilização. Os alunos e alunas iam “estercar” uma tapada que o professor possuía quase em frente da escola.
De um modo geral, as preocupações de higiene eram poucas. No Bairro de Baixo, na Mata velha, muitas casas não possuíam quintal. Era costume, por isso mesmo, despejar a urina na própria via pública. Imagine o leitor, habituado ao conforto dos tempos que passam, o terrível odor daquelas ruas, sobretudo no Verão. As fezes dos enfermos e dos preguiçosos que faziam no bacio, durante a noite, eram despojadas nas Quelhas ou a escassos metros do perímetro urbano.
7. FESTAS E OUTRAS DIVERSÕES
Apesar do estado de carência geral em todos os domínios, a vida ia decorrendo e o povo tentava divertir-se. Ia-se para o trabalho do campo em grupo e cantava-se pelos caminhos. Nas fegas, os homens e as mulheres, ora falavam, ora cantavam. Por vezes, faziam-no ao desafio. Quem canta seus males espanta, diz o ditado.
Nos domingos da parte de tarde, as raparigas vestiam os seus fatos melhores e juntavam-se aos grupos, nos largos. Subitamente, desatavam a cantar as modas que estavam em voga e dançavam umas com as outras. Os rapazes, que estavam sempre por perto, nas ruas ou nas tabernas, convergiam para o mesmo local e o baile começava.
A quadra carnavalesca começava no dia de Reis e terminava na terça-feira de Carnaval. Era um período de grandes paródias, bailaricos, representações dramáticas e muita licenciosidade. Fazia-se jus ao lema “é Carnaval, ninguém leva a mal”. No dia de Carnaval, os rapazes solteiros iam às casa das raparigas solteiras e faziam-lhes uma cruz na testa com a massa utilizada na lubrificação dos eixos das carroças e seguidamente atiravam-lhes mãos-cheias de farinha ao rosto. Era um verdadeiro jogo do gato e do rato. Havia sempre uma rapariga ou outra que escapava à praxe, sujeitando-se, todavia, de a ser “fuscada” e enfarinhada no próprio baile.
No Domingo-de-ramos, sob a égide do professor primário, realizava-se uma curta procissão, na qual participavam os rapazes da escola primária. Cada menino erguia uma pequena pernada de oliveira, enfeitada com flores da época, nomeadamente, goivos e malmequeres.
A Páscoa, após aquelas sete semanas soturnas da Quaresma, era como que um tempo de reinvenção da alegria. Da minha infância mais recuada, lembro-me de uma única Procissão dos Passos. Ouvi muitas vezes encomendar as almas. Esta tradição, que esteve esquecida durante anos, foi recuperada mais recentemente. No domingo de Páscoa, realizava-se uma procissão e cantava-se a “Aleluia”. Na segunda-feira havia festa rija, com fogo e música, em honra de S. Pedro. O dia começava com as boas festas. O pároco percorria todas as ruas da aldeia e entrava em todas as casa, onde havia, à entrada um pequeno tapete de rosmaninho, alecrim, goivos e malmequeres. para dar o crucifixo a beijar e recolher uma dádiva monetária dos paroquianos.
Ainda antes de almoço, realizava-se a missa e a procissão em honra de S. Pedro. Regressava-se à aldeia e da meia-tarde até ao pôr-do-sol, no largo da capela, cantava-se a plenos pulmões o “S. Pedro, senhor S. Pedro” e outras cantigas do folclore local e regional e “balhava-se” ao som da banda.. A festa continuava no Largo da Igreja. O piquenique dos vinhos e dos chouriços e outras comezainas, na segunda-feira de pascoela, é uma prática recente. Ainda não se trata de uma genuína tradição. E provavelmente nunca o será.
Os Santos Populares nunca foram motivo de festejos especiais. Coincidiam com tarefas urgentes nos campos. Faziam-se pequenas fogueiras nas ruas, nas quais se queimavam cabecinhas-do-menino-jesus (carqueja) e outros arbustos aromáticos e miúdos e graúdos saltavam sobre as chamas, numa vozearia que indiciava alegria.
Em Agosto, realizavam-se os festejos em honra de Santa Margarida, padroeira da Mata. Tinham uma componente religiosa e uma componente profana. Com fogo e música, missa e procissão, o povo divertia-se durante três dias. Não tinha data certa. Na actualidade, realiza-se no primeiro fim-de-semana de Agosto e nem sempre com fogo e música.
Em Setembro, realizavam-se os festejos em honra do mártir S. Sebastião. Era em tudo idêntica à de Santa Margarida, mas era menos participada e também já não tinha o fulgor da grande festa de Agosto. Deixou de se realizar, porque os emigrantes tinham as suas férias em Agosto e não podiam permanecer para dar continuidade à tradição. Numa primeira fase realizaram-se festejos conjuntos e na actualidade penso que só se celebra a Santa Margarida.
As três festas constituíam o grande pretexto para se comer melhor e para se descansar de uma vida bastante dura. As festas de Verão eram realizadas depois das ceifas e das malhas e antes do início da colheita da azeitona. Era o tempo adequado para o recargar de baterias. Comiam-se carnes de ovinos, caprinos e galináceos. Faziam-se os doces – sempre cozidos no forno a lenha -, arroz-doce e outras coisas simples, mas que eram, pela escassez, verdadeiras iguarias.
O dia de Santos – de todos os santos -, que é um dos chamados feriados religiosos, não merecia quaisquer festejos. Era aproveitado pelos rapazes e raparigas para pedirem o chamado «santórum», ou seja, o pão por Deus de outras regiões do país. Feita a volta, os miúdos levavam para casa, no saco de pano, laranjas, ameixas e figos secos, diospiros ainda verdes, romãs e outros frutos da época.
O Natal era também quase uma festa de praça pública. Aos rapazes, que, num dado ano civil, completavam dezassete anos, competia dar o madeiro e organizar o baile de Natal. E dar também o vinho que se bebia no baile e junto aos madeiros, no Adro da igreja matriz. Era uma festa de rapazes.
Não havia a chamada ceia de Natal urbana, tal como hoje existe um pouco por todo o país. Ceava-se como nos dias normais e cantava-se na rua, em grupo, o menino Jesus. Ia-se à casa de uma pessoa ou outra beber mais um copo e comer uma filhó. Como o clima era rigoroso, esperava-se junto aos madeiros pela Missa do Galo. Terminada esta cerimónia, as pessoas permaneciam junto aos madeiros ou dirigiam-se para as suas casas. No dia seguinte, assistiam de novo à missa e beijavam o Menino.
O baile de Natal decorria num dos salões da Mata e os encargos eram da responsabilidade dos rapazes de dezassete anos.
7.1. O BALHO-Ó-COMPRIDO
Constituía o momento alto de todos os festejos populares. Apesar da sua rusticidade, ou talvez devido a ela, o balho-ó-comprido era dançado por novos e velhos, juntando por vezes três ou mais gerações: avós, filhos e netos.
A banda tocava uma espécie de fandango, os pares, separados, executavam um movimento de vaivém ( para cima e para baixo), com os braços no ar e produzindo um estalido com os dedos médio e polegar. O par que se encontrava na posição cimeira, agora de mão dada ou cruzando um braço sobre os ombros, descia até ao fim da fila e recomeçava. E todos os pares restantes procediam da mesma forma. Por vezes, chegava-se a dançar quase uma hora. Como é óbvio, havia muitas desistências. Mas era um momento único!
PÁGINAS DO MEU DIÁRIO
Mata, 17 de Setembro de 2000 - Passei à porta da minha primeira escola, na Mata, onde levei muita pancada dos professores Ester e Falcão, mulher e marido, que durante muitos anos foram donos da escola e da maioria dos alunos. Era um verdadeiro casal de falcões numa terra de gente humilde e espoliada.
Ensinaram várias gerações de matenses a ler, a escrever e a contar, que era aquilo que o Estado Novo queria que as populações rurais soubessem. Mais os rios e as serras e as linhas dos comboios. Da História de Portugal aprendia-se os nomes dos reis, das rainhas e os nomes das batalhas travadas contra os mouros e castelhanos. E mais umas quantas coisas que após os exames todos esquecíamos.
As salas e os recreios estavam separados por um muro, embora as turmas fossem mistas. Não porque isso correspondesse a uma posição progressista, mas apenas por uma questão de gestão. A senhora com a primeira e terceira e o senhor com a segunda e a quarta classes. O método era o da chapada e da reguada. Constituíam excepções a esta regra os filhos e netos dos terratenentes. A Ana Vitória, filha do senhor Joaquim Capinha e neta do senhor António Tomé, suponho que nunca levou reguadas. E a Maria Hermínia Bernardo também não. Os outros levavam todos, ou porque era suposto serem mais rudes ou por não se saberem comportar.
Quando o professor se aproximava do pequeno portão os alunos formavam por alturas. Um aluno escolhido pelo mestre dava as ordens de “firme” e “sentido”. Com um gesto já conhecido do professor fazia-se “direita volver” e lá começava a marcha e um hino que começava assim :”Somos pequenos lusíadas”. Por vezes, era ao som do “um, dois, três, quatro”, que era a versão escolar da versão militar “ope, dois, erdo, direito “. E só depois deste desfile pseudo-cívico, pseudo-militar, pseudo-patriótico, pseudo..., que Deus lhe tenha a alma em sossego, se entrava na sala de aula.
Prometo que voltarei a este assunto. Não para ajustar contas, não para denegrir quem quer que seja, não para reabrir velhas feridas. Quero apenas fazer a minha catarse pessoal e deixar um testemunho de um salazarismo rasca, perpetrado por um servidor acérrimo de um regime sem alma nem coração.
Mata, 19 de Outubro de 2002 – Oh, que saudades eu tinha de pernoitar na Mata!
Jantei com delongas de abade, estive em duas tabernas a que eufemisticamente chamam cafés, dei uma voltinha redonda – passe o pleonasmo - para sentir bem o odor da terra, ainda espreitei a televisão, e, às onze e qualquer coisa, entreguei o corpo a morfeu.
Durante sete horas dormi o sono dos justos e acordei com o barulho das carroças madrugadoras, que o trabalho é muito e não se condói com preguicites. Fiquei quietinho na cama, tentando reconhecer vozes e ouvindo o canto desafinado dos últimos galos que teimavam em anunciar a manhã.
No mundo rural o tempo tem outra dimensão. Mesmo quando temos tarefas para executar, chega para tudo e ainda sobra. E não há correrias, que estas fazem mal ao coração e podem-nos ser fatais.
O que ali mata é o isolamento e a solidão. E se estes rapazes que nos governam, e se arrogam o direito de falar nos superiores interesses da Pátria, decidirem o pagamento de portagens na chamada A-23, maior será ainda o isolamento e a solidão dos nossos pais e parentes, que lhes entregaram de boa fé o voto, na ilusão de um aumento da reforma e de mais alguma protecção.
Pobre gente, a minha gente!
Mata, 1 de Dezembro de 2002 – O centro de Castelo Branco está irreconhecível. As obras do projecto polis arrancaram a trinta e nove à hora e para quem vem de visita é a barafunda geral. Quem se habituou a comprar jornais no Vidal ou no João, filho do velho Albino, está tramado. Não sei concretamente o que vai sair das obras. Não li nada, nem vi maquetas. Espero paulatinamente para ver o resultado final e desejo que estejam a ser rasgados caminhos para o futuro.
Um café na Colmeia e aí vai ele, J. A Morão abaixo, direitinho à Mata que nem um fuso. Sempre achei que a Mata é a minha pátria primeira. A ideia pode parecer extravagante, mesmo espatafúrdia, mas há entre mim e o espaço da aldeia uma identificação tão profunda, que a minha memória anda sempre em ebulição.
Bem vistas as coisas, vivi muito mais tempo noutros sítios do que na Mata. Castelo Branco, Paris, Luanda e Santa Iria de Azóia, consumiram quase quatro quintos da minha existência. E no entanto, à semelhança de Ulisses, é para a Mata que quero voltar. Para ter Castelo Branco por perto. E outros espaços da Beira, que são para mim um verdadeiro roteiro sentimental.
O ter vindo à Mata e a Castelo Branco, neste dia primeiro de Dezembro, provavelmente… Provavelmente, estava escrito no livro grande!
2 comentários:
De muito interesse este artigo.
Apenas um comentário para dizer que algumas das palavras próprias da Mata sào frequentes também no galego.
Aqui cheguei pesquisando a palvra melgo, qué, só a ouvi nas serras orientais do Zebreiro e Courel.
Obrigado por divulgar a cultura popular.
Caro Capeloso,
Eu é que agradeço o seu comentário. A minha obrigação é trabalhar e divulgar a cultura popular.
Abraço,
Manuel
PS- Já há livro.
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