terça-feira, setembro 28, 2010

SONETO


Continua o mundo desconcertado,
Um mar de mentira e hipocrisia.
Desde Camões, pouco terá mudado,
Continua a mandar a vilania.


Os ricos, ousados e poderosos,
Ditam suas injustas leis ao mundo.
Incapazes de gestos generosos,
Tudo submetem ao dinheiro imundo.


Vivemos um tempo de submissão,
Que ignora princípios e valores.
O estudo, a probidade e a razão,


Deram lugar às cunhas e aos favores.
E assim corre a vida desta nação,
De engenheiros, bacharéis e doutores.


Manuel Barata, Fragmentos com Poesia, Ulmeiro, Lx. 2005

sábado, setembro 25, 2010

SESIMBRA

1
Quando o sol te morder a pele
E sentires o chamamento do mar,
Não hesites. Vai.

2

O meu reino daria
Por uma varanda sobre o mar.

Em Sesimbra,
Pois claro!

3
A proximidade do mar me basta.

Infelizmente,
Falta-me o pulmão
Para o desafiar
Em possantes braçadas.

4

Nunca aprendi a nadar.

Ah, os pequenos nadas
Da já longínqua infância!

5

Talvez um dia,
mãe,
Te traga comigo a ver o mar.

… a Sesimbra.

Só então saberás
Quão bom seria
Saber nadar.

Sim, só então.

quarta-feira, setembro 22, 2010

TRÍPTICO PARA VAN GOGH

I

Subitamente,
No auge da devoção,
Recebeu do céu
Divina inspiração.

Desenfreado,
De paleta na mão,
Desatou a pintar
Ao ritmo do coração:

Sóis,
Ciprestes,
Miosótis
E girassóis.

II

Do fundo da mina
- Qual vagabundo -,
Trouxe as cores
Com que iluminou o mundo.

E no entanto
- Moderno Prometeu -,
O pobre Vincent
Nem uma tela vendeu.

III

E um dia,
Quando o voo rasante dos corvos
Se tornou ameaçador,
Fitou o cocuruto dos ciprestes
E entregou a alma ao Criador.



Manuel Barata, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, Lx. 2005

terça-feira, setembro 21, 2010

BORGES
Passou pelo mundo, excêntrico e atrevido, um argentino a quem os deuses, um dia, negaram a luz. Onde quer que ia, diz-se, inundava os sítios com preciosas pedras, que irradiavam mais luz do que muitos sóis.

Modestamente, dessas pedras disse que uma só, se boa fosse, lhe daria todo o contentamento que os humanos podem experimentar. Enganou-se! Feitos os necessários testes, os sábios confirmaram que todas aquelas preciosas pedras eram veras fontes de luz.

Hoje, há uma legião de fiéis que se esforça para ordenar e descrever para todas as línguas do mundo as tais preciosas pedras, que são também sábias e raras.

Normal não é; porém, às vezes, os humanos vingam-se dos deuses.
Manuel Barata, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, Lx., 2005


domingo, setembro 19, 2010

DO MEU DIÁRIO

CASTELO BRANCO (CENTRO DA CIDADE)
Santa Iria de Azóia, 18 de Setembro de 2010 – Desde a infância que oiço falar da alma; no entanto, confesso com a minha habitual humildade, que ainda hoje não sei o que é a alma. E duvido que alguém me possa dar uma explicação capaz.


O facto de não saber concretamente o que é a alma não faz de mim um incréu qualquer. Acredito que os indivíduos tenham alma, do mesmo modo que acredito na alma das cidades. E neste momento, se fosse possível, alguém me poderia perguntar o porquê deste aranzel. Embora não sendo obrigado a dar explicações, digo já ao que venho e prometo ser rápido.


Castelo Branco, a minha cidade natal, cresceu muito nos últimos cinquenta anos. O perímetro urbano que eu conheci enquanto criança e adolescente terá, seguramente, triplicado em cinquenta anos; porém, o coração da grande urbe continua a pulsar na Praça do Município, na Alameda da Liberdade, Avenida da Liberdade, o cimo da General Humberto Delgado e da 1º de Maio, e, claro está, o Largo da Sé. Ou pelo menos é assim que sinto a cidade, quando nela permaneço algum tempo.


Castelo Branco continua a ter bons cafés, onde ainda é possível encontrar velhos amigos, ler o jornal ou outra coisa qualquer, olhar os abrunheiros. O emblemático Arcádia desapareceu; o Aviz já não é o café de Rolão Preto e dos próceres do regime anterior; a Assembleia fechou as portas e o edifício degradar-se-á para lá se construir outro; outros prédios, que são edifícios da cidade, ali no moderno centro histórico, pedem obras de conservação. Mas é neste espaço, onde o velho e o novo coabitam pacificamente, que se encontra o verdadeiro carácter da cidade, a sua alma.


Numa última palavra, quero realçar a reanimação do Cine Teatro Avenida, que fez parte da minha vida durante vários anos: quatro filmes por semana, bailes de finalistas, teatro, récitas e muitos outros eventos. Até comícios, em 69, com Alçada Batista e demais candidatos da CDE. O Cine Teatro Avenida, que também é uma parte importantíssima da alma da cidade que amo e à qual regresso sempre com muitas saudades.

sábado, setembro 18, 2010

PROMETEU


I

Onde estão os meus corcéis?
Tragam-me os meus corcéis,
Que quero rápido cruzar os céus
À procura de um novo sol.


II


Vinde cá,
Meus cavalinhos de oiro,
Vinde cá!
E levai-me a todas as galáxias,
Que quero encontrar
Uma nova luz.


III


Meus cavalinhos de oiro,
Meus fogosos corcéis!
Levai-me,
Levai-me a todos os pontos do universo,
Que quero encontrar
Uma nova fonte de fogo.


Manuel Barata, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, LX. 2005.

sexta-feira, setembro 17, 2010

ANTÓNIO NOBRE
Às vezes, dou por mim agarrado ao Só de António Nobre e sinto uma imensa tristeza. Eu sei que parte daquele sofrimento é fingido, porque todos os poetas são fingidores. Mas usa uma máscara tão autêntica, tão dramaticamente convincente, que a tristeza de Anto me esfarrapa todo por dentro.

Às vezes, ponho-me a imaginar António Nobre, sozinho, nas ruas de Paris, rememorando a igreja de Leça, o mártir S. Sebastião, o Senhor de Matosinhos... Eu imagino Anto, naquele ambiente moderno e cosmopolita, corroído de saudades dos manéis, do mar, de barcos, de fanfarras, eiras, pescadores, camponeses, arraiais.

Às vezes, agarrado àqueles versos que até parecem conversa fiada, pelos meus olhos perpassa um Portugal beato, atrasado e rural. Que permanece, cem anos depois de Nobre, apesar de tudo, tremendamente real.
Manuel Barata, FRAGMENTOS COM POESIA, Ulmeiro, 2005

quarta-feira, setembro 15, 2010

A "DIVINA" LIVRARIA LELLO

2ª feira passada

DO MEU DIÁRIO

Lisboa, 29 de Agosto de 1994 - Rabiscar notas, mesmo sob a forma de diário, não é tarefa fácil. Ainda que a escrita me esteja na massa do sangue; alinhar notas que suscitem interesse, numa prosa minimamente escorreita e ágil, repito, não é tarefa fácil. E há dias em que o vazio é total e o branco assusta. E no entanto, escrevo pelo prazer que a escrita me proporciona e não com a intenção de ganhar a vidinha. De resto, apenas um escrito me rendeu meia dúzia de patacos.
Concordo que um diário seja um espelho - um espelho muito peculiar - que há-de reflectir do autor a imagem desejada. Torga faz passar meia dúzia de ideias fortes: um homem na cidade, desenraizado, que procura no espaço primordial de S. Martinho de Anta a força para perseverar nos muitos desafios da vida; um homem dotado de uma grande firmeza de ânimo, à boa maneira dos estóicos, visível já nos textos escritos na prisão do Aljube, nos anos trinta; um homem solidário com os seus semelhantes e preocupado com a condição humana; um homem ousado, quando critica o Quixote de Cervantes; etc. Mas há outro Torga que se vai insinuando e que nada tem a ver com o caçador de S. Martinho de Anta: o artista que viaja e lê os autores mais significativos da literatura europeia (Ibérico por convicção, a sua Europa estende-se até aos Urais); homem culto que é capaz de se pronunciar acerca de Rembrant e Beethoven. Ao fim e ao cabo, apesar de reivindicar persistentemente as suas raízes camponesas, lá bem no fundo, Torga não despreza um certo cosmopolitismo. E aqui encontramos, seguramente, uma das razões da sua candidatura ao Nobel.
Seja como for, não há que levar a mal que o autor de Os Bichos tenha as suas estratégias. É um direito que lhe assiste. Há que respeitá-lo enquanto homem e criador.
Retomando o fio à meada e para concluir, compartilho da ideia de que um diário, construído texto a texto, como quem constrói uma casa, é um acto criador como outro qualquer. Com a vantagem de o seu autor se despir perante os leitores, enquanto pessoa empírica, e não poder gozar de um estatuto idêntico ao do narrador que, no entender de Roland Barthes, “é um ser de papel”.

DO MEU DIÁRIO

Praça de Santiago

Guimarães, 12 de Setembro de 2010 – Há, na minha humílima opinião, um paradoxo insanável na bonita cidade de Guimarães. Tendo sido o berço de Portugal e reivindicando o facto desde sempre e de forma patriótica; curiosamente, pelo que conheço de Portugal e do Norte, a cidade de Guimarães é a mais espanhola das cidades portuguesas.

Eu explico depressa, antes que algum vimaranense mais exaltado me dê com a espada de Afonso Henriques, na ignorância das minhas rectas e nobres intenções. Guimarães é uma cidade muito bonita – passe a reiteração desnecessária – e com um centro histórico bem cuidado, onde há esplanadas e mais esplanadas e se cultiva uma cativante vida de relação.

Ontem à noite, por exemplo, a praça da Igreja da Senhora da Oliveira e a praça de Santiago tinham por ali umas centenas de pessoas, que davam vida a um espaço fabuloso, à semelhança do que acontece nas praças da nossa irmã Espanha. Come-se, bebe-se, vêem-se dois desafios de futebol simultaneamente, Real-Osasuna e Sporting-Olhanense, convive-se.

E quem achar que é coisa pouca, que me dê exemplos melhores. Como se faz no “facebook”, eu digo alto e bom som e para que conste: “gosto disto”!

TERRAS DE BOURO 2

RIO CALDO

quarta-feira, setembro 08, 2010

DO MEU DIÁRIO

Lisboa, 25 de Maio de l994 - Não tenho da amizade uma visão utilitária, nem espero dos meus amigos sins incondicionais. Aos amigos, a todos sem excepção, quero apenas lealdade e solidariedade nas horas difíceis.

Os amigos, os verdadeiros amigos, são aqueles que, nas curvas apertadas da vida, se recusam a integrar o pelotão de fuzilamento; são aqueles que, nas situações de doença, nos visitam na cama do hospital e nos trazem uma palavra de esperança; são aqueles que, sendo amigos do coração, nunca nos pedem o impossível; são aqueles, em suma, que participam das nossas alegrias e tristezas. Sendo este o meu conceito de amizade, resta-me a consolação de conhecer muita gente, que me cumprimenta e cumprimento cordialmente.

A família é um mundo à parte.

sexta-feira, setembro 03, 2010

DO MEU DIÁRIO

Sacavém, 30 de Abril de 1994 - Se perguntarem a um avarento, por que nutre tanta apetência pela posse de bens materiais, antes de mais, negará a sua qualidade de avarento. Dirá que, ao contrário do que os outros pensam, é apenas uma pessoa previdente e contará ao seu interlocutor a conhecida fábula da cigarra e da formiga. E dirá que se sente bem na pele desses minúsculos e negros bichinhos que, de uma forma autómata, executam metodicamente o vaivém entre o local onde se encontra a semente - ou seja lá o que for - e o buraco-armazém.
Como é bom de ver, o avarento não é um contemplativo. Será mesmo incapaz de retirar prazer, de ordem estética ou outra, dos seus bens materiais. Não viu, decerto, “Casimiro e Carolina” no teatro do Bairro Alto ou o “Círculo de Giz Caucasiano” no Teatro Aberto. Não frequenta salas de cinema, não aprecia pintura e escultura, não viaja. Em relação às coisas que enriquecem verdadeiramente um ser humano, o avarento é um homem não. E poderíamos ficar por aqui no que à avareza concerne, mas o retrato ficaria incompleto.
O avarento não cultiva a vida de relação. Vive ensimesmado. Prefere a conversa com os seus botões. Inventaria e actualiza permanentemente o valor dos seus bens. Tudo o que esteja para além do estritamente necessário é supérfluo. Quando compra botas novas aos filhos, recomenda-lhes que dêem passos largos. Gosta de ser convidado, mas quando toca a sua vez de pagar a conta, desafia os parceiros para jogar à moedinha. Vai aos arames quando lhe falam em férias. Cria galinhas na varanda de sua casa para poder vender ovos. É o único que não ri, quando lhe contam a nova versão da fábula da cigarra e da formiga, que aqui deixo reproduzida:
No pico do inverno, a cigarra bate à porta da formiga e esta pergunta:
- Quem é?
- Sou eu, a cigarra.
- Que queres?
Quero apenas falar contigo, formiga.
- Já conheço os teus truques desde que o mundo é mundo. Estou farta da tua música.
- Não sejas parva , formiga. Abre lá a porta!...
A formiga abriu o postigo e deparou com a cigarra toda anafada e de casaco de peles. È então que a cigarra diz:
- Vou para Paris. Vim despedir-me de ti.
- Estupefacta, a formiga replicou:
- Olha, cigarra, já que vais para Paris, se vires o La Fontaine, manda-o foder com a história da fábula.
Terão notado, com certeza, que me centrei apenas num tipo de avarento, ou seja, naquele que vive obcecado pelo dinheiro e pelos bens materiais. O discurso poderia, no entanto, ser dirigido noutras direcções. Poupemos, por hoje, os ambiciosos de todos os matizes e os mesquinhos.
A avareza, caríssimos alunos e colegas, é um pecado capital. Pratiquemos todos, todos sem excepção, a prodigalidade, tornando-nos dignos do senhor D. João V, o tal que, com o oiro do Brasil, mandou construir o convento de Mafra e passou à História com o cognome de “o Magnânimo”.

quarta-feira, setembro 01, 2010

DO MEU DIÁRIO

Santa Iria de Azóia, 01 de Setembro de 2010 – Sempre me doeu muito que houvesse modas e escritores na moda na literatura portuguesa e nas outras. E dói-me, fundamentalmente, porque alguns dos autores que amo verdadeiramente caem assim numa espécie de limbo, merecendo apenas a visita de alguns curiosos ou de estudiosos que lhes vão dar a mão e os recuperam para a actualidade.

Este apontamento começa de forma muito arredondada e não sei se conseguirei dizer ao que venho hoje. Sempre gostei muito de Miguel Torga e dos modos literários em que achou por bem exprimir-se. Nomeadamente o diário, que também cultivo de forma mais ou menos sistemática. E dói-me, de facto, que D. Miguel de S. Martinho de Anta, já não seja lido e devidamente apreciado como merece. Bem sei que é preciso dar o lugar aos mais novos e ao novo, mas tenho para comigo que há autores e obras que não envelhecem ou não deveriam envelhecer.

Num tempo em que certos valores como o trabalho, a coragem, a luta por um mundo melhor e a ética parecem ter caído em desuso, parece-me que Miguel Torga continua a ser um autor pertinente e que deveremos indicar aos nossos filhos e netos como um bom luso exemplo a seguir.

Escrevi luso exemplo. E exactamente em relação a um autor que afirmava que a sua pátria telúrica se estendia desta ponta ocidental do Atlântico até aos Pirinéus. Em Torga, e a escolha do pseudónimo não foi inocente, porque quis o poeta ficar conhecido pelo nome da raiz da urze, ou seja, aquela parte do arbusto que fica intimamente ligada à terra.

Este otorrinolaringologista que em criança trabalhou no Brasil e se fixou mais tarde na cidade onde o Mondego preguiçoso se espraia, verdadeiramente, saiu, e não saiu, de S. Martinho de Anta. É ali onde tem os seus penates que pega na enxada, calcorreia os campos e a raiz volta a ganhar força telúrica para trabalhar em Coimbra e percorrer Portugal e o mundo.

Neste autor, só nunca percebi, ou se calhar até percebi, a sua animosidade em relação a Cervantes e ao Quixote, mas estas já são contas de outro rosário.